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Casal gay do DF terá gêmeos com material genético das famílias dos dois pais


A paternidade não vem com manual de instruções. A frase popular, muitas vezes usada para transmitir o sentimento de que a prática ensina a teoria, pode ser aplicada para afirmar que não existem normas quanto ao melhor caminho para ser pai. É o caso dos engenheiros civis Gustavo Catunda, 29 anos, e Robert Rosselló, 31, casados há 10 anos. Os moradores de Taguatinga Norte se conheceram na faculdade, tornaram-se melhores amigos e perceberam que a amizade daria uma linda história de amor. “Desde o primeiro momento, sabíamos que queríamos ser pais”, relata Gustavo. E, em breve, esse desejo vai se realizar. A prima de Gustavo espera os gêmeos do casal, gerado com o óvulo da irmã dele e o sêmen do marido, Robert.

O objetivo, segundo Robert, era usar a combinação de material genético de ambos. “Sempre quisemos fazer uma misturinha de nós dois”, ressalta. Gustavo completa, citando que imaginavam como seria possível concretizar o sonho. “A forma mais próxima de fazer isso era usar o óvulo da minha irmã, Camila, com o sêmen do Robert. Eu e ela somos muito parecidos na aparência”, explica Gustavo.

Em 2015, eles iniciaram o processo para se tornarem pais e encontraram a primeira dificuldade, que se juntou ao desafio de serem gays. “Naquele ano, descobrimos que não poderíamos usar os óvulos da Camila”, lembra Robert. A doação de material genético no Brasil só podia ser feita de maneira anônima, sem saber a procedência biológica da doadora (veja Para saber mais).

“Quando nos declaramos pais gays, é como se estivéssemos ‘saindo do armário’ pela segunda vez. Os preconceitos e as barreiras voltam, e as pessoas começam, de novo, a colocar empecilhos e a dizer que não podemos ser pais. As conquistas recomeçam, e precisamos lutar de novo para que as pessoas nos reconheçam como uma família”, destaca Gustavo. “É muito comum, inclusive, que as pessoas tentem nos encaixar em padrões normativos e perguntem ‘quem vai ser a mãe? Quem é o pai biológico?”, detalha Robert. “Não tem isso. Nós dois somos pais e não há a figura materna. Isso é extremamente ofensivo. A participação genética condiciona a maternidade? E mães que são adotivas, por exemplo?”, questiona Gustavo.

Inesperado

Mesmo contrariando o desejo original, o casal passou a buscar as possibilidades disponíveis. Os engenheiros, então, cogitaram fazer todo o processo em outro país. Segundo eles, houve duas propostas, uma nos Estados Unidos, ao custo de U$ 100 mil, cerca de R$ 526 mil, e outra na Colômbia, com preço de U$ 60 mil, aproximadamente R$ 315,6 mil. “E para pagamento à vista”, acrescenta Gustavo. “Vimos que seria impossível fazer o processo em outro país, e continuamos à procura, inclusive da barriga”, continua.

Em novembro, a publicitária Lorenna Resende, 27, recebeu um pedido inusitado do primo Gustavo. “Ele me perguntou pelo Instagram se eu toparia ceder o útero para a gestação do filho deles. De pronto, falei que sim e, no mesmo dia, confirmei”, revela a moradora da Asa Sul. Em seguida, o trio deu início ao processo na clínica Gênesis, que atua na assistência de reprodução humana. Agora, Gustavo e Robert precisavam de um óvulo. Passada a frustração de não ser possível optar pela mistura do material genético dos dois, o casal passou a procurar alternativas e se dirigiu a um escritório de advocacia especializada em direito de família.

Opções

Isadora Dourado Rocha foi uma das advogadas que participou do atendimento aos engenheiros civis. “Como todo o processo seria feito com assessoramento médico e jurídico, as crianças, ao nascer, teriam a paternidade garantida no nome dos dois. Não há figura materna, apenas doadora e gestante”, explica a especialista. “A reprodução assistida envolve um caminho longo e acaba sendo mais usada por casais gays, mas casais heterossexuais também podem fazer uso. Muitos acabam desistindo, porque não sabem que os procedimentos podem ser feitos via Sistema Único de Saúde (SUS), já que fazem parte do planejamento familiar, garantia constitucional a todas as famílias”, resume Isadora.

Após a introdução às opções disponíveis, Gustavo e Robert decidiram comprar os óvulos de um banco internacional da Ucrânia, país onde o serviço apresentava o melhor custo-benefício, entre preço e informações disponíveis acerca da doadora. Na véspera da compra do banco ucraniense, a advogada Isadora enviou uma mensagem ao casal contando a boa notícia: a resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que impedia a doação nominal havia sido alterada, e eles poderiam usar o óvulo de Camila, irmã de Gustavo. “Foi o maior milagre das nossas vidas, não tem outra explicação”, emocionam-se Gustavo e Robert.

Começou, então, uma sequência de boas coincidências, originadas há 20 anos, quando Camila Catunda, irmã de Gustavo, nasceu. “Para mim, foi tudo muito tranquilo. Na minha cabeça, não vou ser mãe, vou ser tia. Não tenho sentimento de maternidade. Já amo com toda a força, mas não sou mãe, e o amor de tia também é grande”, expressa a estudante de arquitetura. “Na cabeça de nós quatro, está tudo muito bem resolvido. As pessoas de fora querem que se torne um problema para a gente, quando, na verdade, não é”, defende.

Para ela, a única parte difícil foi o amadurecimento dos óvulos, não tanto pelo processo, mas pela parte física, que envolveu exames e indução por meio de hormônios. Depois de cerca de três semanas de tratamento, a operação de retirada dos óvulos foi feita. “Precisei passar 12 horas de jejum e teve anestesia geral, mas a cirurgia, em si, foi bem tranquila”, descreve a jovem. “Durou pouco mais de uma hora e, aproximadamente 20 minutos depois do procedimento, eu estava bem e pronta para outra”, brinca a doadora.

Seguindo a lista de eventos fortuitos, veio o pareamento dos ciclos menstruais de Camila e Lorenna. “É difícil conseguir sincronizar, porque precisa de controle hormonal e, às vezes, o (sistema) endométrio não responde como esperado, e é preciso congelar os embriões. Mas, no caso deles, deu tudo certo”, elenca a médica ginecologista Lorrainy Rabelo, responsável pelo tratamento da família. Lorenna parou de tomar anticoncepcional para o tratamento após seis anos de uso do medicamento, e o esperado era que a parede do útero estivesse grossa, mas o órgão estava em condições perfeitas para dar início ao procedimento. “Tivemos sucesso na primeira tentativa”, comemora a ginecologista. Dois embriões foram introduzidos no útero de Lorenna. Pelos cálculos da médica, Gustavo e Robert são um dos primeiros casais do Brasil a fazer reprodução assistida com a nova permissão do CFM.

Final feliz

Depois de nove dias, o resultado do exame de gravidez: Lorenna estava esperando gêmeos. Não só o tratamento foi bem-sucedido, como os dois embriões implantados na receptora prosperaram, e ela está na 12ª semana de gestação. Como todo o processo foi feito, desde o início, de maneira conjunta, a gravidez não poderia ser diferente. “Às vezes, quando estou enjoada ou estressada, ligo para os meninos e fico mais tranquila. É tudo muito bem compartilhado entre nós, todas as experiências, as frustrações, os medos e as felicidades”, conta a gestante.

Apesar de enjoos e azia constantes, ela não se arrepende da decisão em momento algum. A publicitária, que é mãe de um menino de 6 anos, relata que as sensações das duas gestações não são tão diferentes entre si quanto parecem. “A gravidez do meu filho não foi planejada, então, acabei não curtindo muito. Eu não estava apática à situação, mas não tinha muito o sentimento de desejo, como nesta. Ver os meninos querendo tanto e participando de tudo me deixa muito feliz. Não tive muito essa rede de apoio pela primeira vez, o que é incrível. Damos muita força um para o outro”, celebra.

A única dificuldade, agora, não chega sequer aos pés de todos os percalços enfrentados pelo casal ao longo da trajetória de início da paternidade. Gustavo e Robert têm que escolher o nome dos filhos. “Ainda não sabemos o sexo, mas temos apenas uma ideia de nome para cada gênero. Se forem duas meninas ou dois meninos, complicou”, divertem-se.

Para saber mais

• Reprodução assistida envolve as técnicas de reprodução auxiliadas pela medicina. As mais conhecidas são a inseminação artificial, a fertilização in vitro e a gestação de substituição, também conhecida como barriga solidária ou cessão de útero.

• Não há lei nacional específica sobre reprodução assistida. De maneira geral, o direito ao planejamento familiar está no artigo 226 da Constituição. Os limites da conduta médica são definidos por resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM). A mais recente, a nº 2.294/2021, foi alterada em 15 de junho de 2021.

• A medida possibilitou a doação nominal de óvulos, de parentes de até 4º grau, mas retrocedeu em outros aspectos, como a exigência de que a mulher que cederá o útero tenha pelo menos um filho vivo e o limite da quantidade de óvulos que podem ser fertilizados, o que dificulta o sucesso do processo para mulheres mais velhas e torna os modelos ainda menos acessíveis.

• Não há, no Brasil, barriga de “aluguel”, porque não há envolvimento de valores monetários. A cessão de útero deve ser feita por uma parente dos genitores, de até 4º grau.

• Todo o processo de barriga solidária e doação de óvulos é feito por meio de acordos, termos, laudos médicos e avaliações psicológicas. A doadora e a receptora dos óvulos não podem, posteriormente, reivindicar “maternidade.” A cedente do útero será gestante, mas não mãe.


Fonte: Isadora Dourado Rocha, advogada especialista em direito familiar do Correio Braziliense


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