Coluna da Magnolia: DIREITO E LITERATURA - O TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA: ONTEM E HOJE – PARTE I
DIREITO
E LITERATURA - O TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA: ONTEM E HOJE – PARTE I
(Antes de iniciar a leitura desse artigo, recomenda-se a
leitura desse resumo da obra, tirado do site Globo Educação):
“O Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto,
narra a trajetória de Policarpo Quaresma, um patriota ímpar, que causa
estranheza nas pessoas pelos seus ideais e coragem. O livro é dividido em três
partes. A primeira começa descrevendo a rotina do Major Policarpo Quaresma.
Major que não era major realmente; era um apelido.
Policarpo era um homem respeitado pela vizinhança, mas ao
mesmo tempo o estranhavam, por causa de seu amor pelos livros e pelo
patriotismo exaltado. Começou a aprender violão, o que causou mais espanto em
seus vizinhos. Seu professor de música se chamava Ricardo Coração dos Outros;
seu amigo que irá lhe acompanhar até o fim. Além de aprender violão, também se
dedicava aos estudos do tupi-guarani. Nem seus vizinhos, nem seus colegas
de trabalho o compreendiam. Policarpo buscava coisas verdadeiramente
brasileiras, desde comida, até a vestimenta. O auge de seu amor pela pátria foi
quando fez um ofício para o ministro, escrito em tupi, defendendo que a língua
oficial deveria ser então essa. Como consequência, foi internado por seis meses
em um hospício, recebendo a visita apenas de Olga com seu pai.
Na segunda parte do livro, seguindo o conselho de sua
afilhada Olga, Policarpo compra um sítio e se muda para lá com sua irmã. Chama
o sítio de “O Sossego”. Retirado da cidade, surge uma nova paixão em Policarpo:
a de estudar botânica e aproveitar ao máximo a terra brasileira, que segundo
ele, era a melhor. Até que um dia o Tenente Antonino Dutra, escrivão, foi até a
casa de Policarpo lhe pedir ajuda para a festa da Conceição. O major, contrário
à política e das suas trocas de favores, nega ajuda. A partir de então os
políticos da área começam a fazer de tudo para prejudicar o sítio; começam a
cobrar taxas e impostos que não eram cobrados anteriormente, pedem para que
seja capinado todo ao redor do sítio. Além disso, os lucros eram pequenos.
Todos esses contratempos começaram a desanimar a Policarpo, que pensou que uma
reforma agrária poderia até ser uma solução, mas que ainda era pequena diante
de seus desejos de progresso para o Brasil. Policarpo queria uma mudança no
governo.
Na terceira parte, Policarpo volta para a cidade assim que
sabe que está ocorrendo uma revolta. O major faz um memorial acerca de suas
experiências com a agricultura e entrega ao Marechal Floriano. Sem dar muita
importância, Floriano convida Policarpo para ingressar na revolta. Policarpo
aceita e é listado como Major. Com a revolta, o cotidiano do Rio muda e a
guerra acaba fazendo parte do cotidiano dos brasileiros.
Ricardo, amigo de Policarpo, por ser considerado um
patriota rebelde, é convocado para fazer parte como voluntário recalcitrante.
Preocupado, Ricardo pede ajuda ao Major, que não pode fazer nada. Triste por
estar afastado de seu violão, Ricardo continua a servir. No decorrer da guerra,
Policarpo dá ordens, vai para troca de tiros e mata um homem. Muito arrependido
e não acreditando ter feito isso, escreve a sua irmã num sentimento de perdão e
culpa. Acabou se ferindo, levemente, mas precisava de cuidados e precisou se
afastar por um tempo. A revolta tem seu fim e Policarpo é levado para uma
prisão, sem um motivo que justifique. Quaresma se questiona por que sendo ele
tão patriota e tão apaixonado pelo país, teria aquele fim. Sabendo da notícia
da prisão, Ricardo tenta salvar o major a todo custo; procura o tenente
Albernaz, o coronel Bustamante, que, mesmo sendo amigos de Policarpo, para não
ficarem mal vistos, não fazem nada. Até que tem a ideia de procurar Olga, que
mesmo contra a vontade de seu marido, vai até a prisão tentar liberar seu
padrinho. Ao chegar lá e ouvir que seu padrinho é um traidor e bandido, Olga
reflete que é melhor deixa-lo morrer com seu orgulho, como um herói.”[1]
POLICARPO
QUARESMA E A CONFUSÃO DA ESFERA PÚBLICA E ESFERA PRIVADA
O
Triste fim de Policarpo Quaresma faz duras críticas às instituições públicas do
Brasil, que deveriam ser democráticas, mas não são, e diversos outros aspectos
advindos de uma cultura patriarcal que possui ecos até os dias atuais. A obra
aponta também o nepotismo e corrupção, temas
bastante atuais, assim como perda de aspectos culturais devido a influência
europeia, em especial com a vinda da Família Real Nesse artigo, teceremos
uma análise a respeito de tal obra.
[1] Site Globo Educação. http://educacao.globo.com/literatura/assunto/resumos-de-livros/triste-fim-de-policarpo-quaresma.html.
Acesso: 05/08/2018.
Policarpo
Quaresma é um romance escrito por Lima Barreto, que era funcionário público, do
Ministério da Guerra, assim como o personagem-título do livro. O romance se
passa durante o governo Floriano Peixoto, logo entre 1891-1894, na então capital Rio de
Janeiro, com uma fase em
que Policarpo muda-se para Curusu, cidade interiorana ficcional. Trata-se da
história de Policarpo Quaresma, sujeito extremamente nacionalisma e obcecado
pela identidade/perfil nacional. Por conta de sua paixão pela pátria, acaba
sofrendo retaliações e por fim, é morto a mando do governo. Abaixo, pequeno
trecho da obra onde Policarpo descreve sua desilução final com o Brasil:
Como lhe parecia
ilógico com ele mesmo estar ali metido naquele estreito calabouço. Pois ele, o
Quaresma plácido, o Quaresma de tão profundos pensamentos patrióticos, merecia
aquele
triste fim? De que
maneira sorrateira o Destino o arrastara até ali, sem que ele pudesse
pressentir o seu extravagante propósito, tão aparentemente sem relação com o
resto da sua vida? Teria sido ele com os seus atos passados, com as suas ações
encadeadas no tempo, que fizera com que aquele velho deus docilmente o
trouxesse até à execução de tal desígnio? Ou teriam sido os fatos externos que
venceram a ele, Quaresma, e fizeram-no escravo da sentença da onipotente
divindade? Ele não sabia, e, quando teimava em pensar, as duas cousas se
baralhavam, se emaranhavam e a conclusão certa e exata lhe fugia. (BARRETO,
pág. 383,)
Um
trecho que destaca o quão individualistas eram (e porque não dizer que ainda
são) os empregados e aspirantes a empregados públicos (confusão do público com
o privado)[1], à
época está no trecho de quando Olga decide ir sozinha pedir pela vida do
padrinho Policarpo Quaresma, que ia ser ceifada de forma injusta por um governo
tirano e corrupto. Armando tenta a convencer de todas as formas a não ir, e
eles acabam tendo uma discussão. Em um trecho dessa discussão, Olga denuncia o
extremo individualismo do marido, dizendo que Armando não pensa em mais ninguém
a não ser ele mesmo, e Olga chama a atitude que ela mesma terá de tentar pela
vida de Quaresma de “traço superior”, especificando ainda mais o quão negativo
era o comportamento individualista e egoísta do marido:
“Eu", é só
"eu", para aqui, "eu"para ali... Não pensas noutra cousa...
A vida é feita para ti, todos só devem viver para ti... Muito engraçado! De
forma que eu (agora digo "eu"também) não tenho direito de me
sacrificar, de provar a minha amizade, de ter na minha vida um traço superior?
(BARRETO, pág. 401)
.
No primeiro momento da formação da
República e suas características como o Estado como uma prolongação da família,
acabou por culminar em uma confusão entre público e privado, onde as pessoas
passaram a ascender aos cargos públicos não para realizar serviços públicos,
mas para satisfazer interesses próprios (LIMBERGUER, 2014).
Na
parte final do livro de Lima Barreto podemos perceber outra vez a
característica da questão do individualismo na prestação do serviço público.
Esse trecho do livro fala de Ricardo, que fazia de tudo para “subir de função”
no serviço público, inclusive coisas não muito honráveis. Como procurar amigos
influentes (mostrando sua falta de mérito). Sua tão somente e única preocupação
em “subir de cargo” e a pouco importância, ou até mesmo desprezo pelo trabalho
desenvolvido. O fato de vestir-se como um europeu a todo momento (belle époque - perca cultural nacional),
especificamente uma pesada sobrecasaca preta,
pois a todo momento estava buscando “oportunidades”. O fato de
concentrar todo seu trabalho intelectual afim de “subir de cargo”. Enfim, o que
importava para Ricardo era “subir de cargo”. Por óbvio, o paralelo com a
contemporaneidade é inevitável.
Ricardo, entretanto,
não se amedrontou; procurou influências de amigos. Ao entrar no Largo de São
Francisco encontrou Genelício. Vinha da missa da irmã da sogra do Deputado
Castro. Como sempre, trajava uma pesada sobrecasaca preta que parecia de
chumbo. Já estava subdiretor e o seu trabalho era agora imaginar meios e modos
de ser diretor. A cousa era difícil; mas trabalhava num livro: Os Tribunais de
Contas nos Países Asiáticos – o qual, demonstrando uma erudição superior,
talvez lhe levasse ao alto lugar cobiçado. (Barreto, pág. 391)
A invasão do privado no público também pode ser
nitidamente percebido no trecho do penúltimo capítulo do livro, em que Ricardo
Coração dos Outros, busca ajuda para salvar Quaresma do fuzilamento arbitrário
à mando de Floriano Peixoto. Quaresma havia denunciado a Floriano Peixoto o
massacre de um grupo de opositores do governo, mas mal sabia ele que Floriano
Peixoto estava de acordo cm a morte de seus opositores, e queria manter tudo na
surdina. Portanto, Floriano manda Quaresma para o fuzilamento. Ricardo Coração
dos Outros e Olga foram os que tentaram salvar a todo custo a vida de Quaresma.
Esse trecho mostra Ricardo Coração dos Outros procurando os amigos do Major
Policarpo Quaresma para apoiarem o não fuzilamento do mesmo. Entretanto, as
suplicas de Ricardo foram inúteis, pois todas as “sólidas amizades” do Major
Quaresma haviam se desfeito por conta da nova conjuntura pública. Esta é um
claro exemplo de confusão do privado e público, herança do patriarcado, que
persistiu nos primeiros anos da República e que até hoje reverbera:
Lembrou-se, porém, de
Albernaz, e correu a procurá-lo. Não era longe, mas o general ainda não tinha
chegado. Ao fim de uma hora o general chegou e, dando com Ricardo, perguntou:
– Que há?
O trovador, bastante
emocionado, explicou-lhe com voz dorida todo o fato. Albernaz concertou o
pince-nez, ajeitou
bem o trancelim de ouro
na orelha e disse com doçura:
– Meu filho, eu não
posso... Você sabe; sou governista e parece, se eu for pedir por um preso, que
já não o sou bastante... Sinto muito, mas... que se há de fazer? Paciência.
E entrou para o seu
gabinete prazenteiro, muito seguro de si, dentro do seu plácido uniforme de
general. (Barreto, pág. 393-394)
Em outro trecho, no mesmo capítulo, há outro bom
exemplo de intromissão do privado no público. Ricardo Coração dos Outros na
tentativa de salvar Policarpo Quaresma do fuzilamento arbitrário, pede ajuda a
Olga, afilhada de Quaresma, porém esta vê-se sem saída. Coração dos Homens
então lhe sugere que peça ajuda ao seu marido Armando Borges[2].
Entretanto Olga desiste de pedir a Armando para que o mesmo pedisse pela vida
de Quaresma junto ao governo pois Armando era ambicioso e interesseiro.
Claramente subentende-se que Armando deixou de ajudar Quaresma, evitando uma
injustiça, pois visava manter interesses próprios. A função pública que Armando
nem mesmo tinha, mas almejava, interferiu no momento de salvar o padrinho de
sua noiva de um fuzilamento. Este é mais um claro exemplo no livro de
interferência do privado no público nos primeiros anos da República, e que até
hoje reverbera:
– Talvez seu marido, disse Ricardo. Pensou um pouco,
demorou-se mais no exame do caráter do esposo; mas, em breve, viu bem que o seu
egoísmo, a sua
ambição e sua ferocidade interesseira não
permitiriam que ele desse o mínimo passo. (Barreto, pág. 398).
Concluímos
que O Triste Fim de Policarpo Quaresma tem extrema verossimilhança com a
situação atual do país. A exemplo, no ano de 2014, houveram polêmicas, pois
surgiram ações do questão da prática do
nepotismo. E nepotismo cruzado (nepotismo com requintes). A questão do
Patrimonialismo, denunciada na obra O Triste Fim, também reverbera até os dias
atuais. Se enxerga em todo o Brasil denúncias da corrupção endêmica. Ou seja, Mesmo depois de tantos anos, as heranças do Brasil
Colônia e seu sistema econômico e social, que endeuzava a figura paterna havia
criado raízes tão profundas que até hoje esbarramos nelas: na falta de
liberdade de nossas mulheres, na violência com nossos filhos, no racismo, entre
tantos outros aspectos negativos. Terras na mão de poucos. Latifundiários
ditando nossa política. A raíz do nosso país é o Colonialismo, com plantation,
escravidão, homens arbitrários e mulheres e crianças caladas e com medo. Como
retirar uma raiz sem derrubar a árvore toda? O pior: a árvore “aceitaria” ser
derrubada? É claro que não. Somos escravos, todos, do nosso passado.
.
Neste
primeiro momento da República, em que o Estado ficou como uma prolongação da
família, havendo confusão, entre público e privado, com as pessoas ascendendo aos cargos públicos não
para realizar serviços públicos, mas para satisfazer interesses próprios – e da
relação de tal fato com os dias atuais o que se relaciona com o nepotismo e
também com a corrupção endêmica. Há um
trecho no final do livro O Triste Fim de Policarpo Quaresma que ilustra bem
esse panorama, especialmente no que tange o nepotismo[3].
Em tal trecho Olga vai ao encontro de Floriano Peixoto pedir pela vida do
padrinho, porém a bajulação dos presentes para com Floriano, afim de obterem
vantagens pessoais era tanta, que Olga não conseguiu falar com o mesmo:
Ela subiu. Havia um
imenso burburinho, uma agitação de entradas e saídas. Toda a gente queria mostrar-se
a Floriano, queria cumprimentá-lo, queria dar mostras de sua dedicação, provar
os seus serviços, mostrando-se co-participante na sua vitória. Lançavam mão de
todos os meios, de todos os planos, de todos os processos. (BARRETO, pág. 402)
[1]
A
confusão entre o público e o privado, é em grande parte fruto do passado
colonial coronelista, que acabou contaminando as instituições republicanas, que
deveriam ser democráticas. Os reflexos atuais são o extremo individualismo doa
agentes públicos que corrobora com o advento da corrupção. O livro retrata o primeiro momento da formação da
República: o Estado como uma prolongação da família: toda a confusão entre
público e privado: as pessoas ascendendo aos cargos públicos não para realizar
serviços públicos em si, mas para satisfazer ambições pessoais.
[2] Armando Borges é
descrito no livro como médico, que se ocupava de escrever artigos em linguagem
rebuscada, porém só pensava em conseguir um cargo público, ou seja, ser médico
do Estado. Extremamente interesseiro, se enriqueceu ao casar com Olga, afilhada
de Quaresma. Médico do Hospital Sírio, atendia vários pacientes em poucos minutos.
Desonesto, roubou Olga, que passou a o odiar, e estava sempre procurando manter
amizades por puro interesse
[3]
Nepotismo é um termo utilizado para designar o favorecimento
de parentes ou amigos próximos em detrimento de pessoas
mais qualificadas, geralmente no que diz respeito à nomeação
ou elevação de cargos públicos e políticos. (Disponível
em: https://www.significados.com.br/nepotismo/.
Etimologicamente,
este termo se originou a partir do latim nepos, que significa
literalmente “neto” ou “descendente”. Originalmente, a palavra era usada
exclusivamente no âmbito das relações do papa com seus parentes.
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