Militar que matar em operações como a do Rio será julgado por corte militar, e não pela Justiça comum
"Uma licença para matar". Assim algumas entidades
de direitos humanos batizaram o projeto de lei aprovado nesta semana pelo
Senado Federal (PLC 44/2016) que transfere da Justiça comum para a militar o
julgamento de homicídios cometidos por militares durante operações especiais de
segurança pública em território nacional. A mudança prática é a seguinte: se um
profissional da Marinha, Exército ou Aeronáutica assassinar um civil durante
uma das atuais operações em comunidades do Rio de Janeiro, onde as Forças
Armadas estão autorizados a atuar até o fim do ano pelo menos, ele não será
julgado pelo Tribunal do Júri, e sim por um tribunal formado em sua maioria por
juízes militares, que não tem necessariamente uma formação jurídica.
O projeto tramitava no Congresso desde 2016. De autoria do
deputado federal Espiridião Amim (PP-SC), tinha como objetivo atender aos
anseios de militares que diziam se sentir desamparados juridicamente quando
eram convocados a atuarem em patrulhas como complemento à atuação da polícia ou
em substituição a elas. Desde 1996, todo militar que mata um civil é julgado
como qualquer outro cidadão brasileiro, por um colegiado formado por sete
jurados escolhidos entre a população local e coordenados por um juiz criminal.
Os jurados decidem se o réu é culpado ou inocente e se há atenuantes ou
agravantes para os delitos. E é o juiz quem estipula a pena. Com a alteração, a
palavra final será de uma maioria formada por membros da sua corporação. Na
primeira instância, são quatro juízes militares e um civil. No Superior
Tribunal Militar, são quinze militares e cinco civis.
Aprovado pelo Congresso Nacional, a proposição ainda depende
da sanção do presidente da República, Michel Temer (PMDB). Questionada nesta
quinta-feira, a secretaria de Comunicação da Presidência da República informou
que Temer ainda ouvirá os ministros das áreas envolvidas, antes de decidir se
veta ou se sanciona a lei. Se depender do que já disseram alguns de seus
subordinados que atuam na área militar, o presidente sancionará a lei.
O ministro da Defesa, Raul Jungmann, disse ao jornal Folha de
S. Paulo que o projeto corrige falhas da legislação vigente. Por meio de seu
Twitter, o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas agradeceu aos parlamentares
por darem garantirem a “segurança jurídica” de seus comandados quando em
operações de Garantia da Lei e da Ordem, a lei que regula a atuação dos
militares em situações que as forças regulares de segurança são consideradas
insuficientes. Villas Bôas foi um dos principais articuladores da aprovação do
projeto junto a senadores e deputados.
Uma das poucas vozes dissonantes na gestão Temer vem da
Secretaria de Promoção dos Direitos Humanos. A responsável pela pasta, a
advogada Flávia Piovesan, chegou a comemorar no ano passado que essa votação
havia sito travada no Senado. Ela era contrária a essa mudança legislativa.
Para ver sua tese vencedora, Piovesan terá de entrar em um embate com políticos
de confiança do presidente, como o líder do Governo no Senado, Romero Jucá
(PMDB-RR), um dos que pediu celeridade nessa votação pelo plenário.
Batalha jurídica
Conforme a decisão de Temer, uma nova frente jurídica deve
ser aberta. Entidades e partidos políticos contrários à mudança legislativa
prometem recorrer ao Supremo Tribunal Federal para questionar a
constitucionalidade da lei. “Entendo que a lei seja inconstitucional, porque a
Constituição Federal fala que crimes contra a vida devem ir para o júri”,
afirmou ao EL PAÍS a diretora da ONG Human Right Watch no Brasil, Maria Laura
Canineu. Em um artigo publicado no mês passado, ela ressaltou que esse tipo de
julgamento é uma prática da ditadura.
Além da HRW, a Conectas Direitos Humanos e a Anistia
Internacional coletaram assinaturas para pressionar os políticos a tentarem
reverter essa decisão dos legisladores. Em sua petição virtual, a Anistia
Internacional afirma que, caso a lei entre em vigor, o “Brasil violará tratados
internacionais dos quais é signatário, obrigações que incluem a garantia do
direito ao julgamento justo, imparcial e independente”.
Um outro ponto questionado pelos estudiosos do tema é o que
trata do treinamento dos militares. Eles entendem que esses profissionais estão
preparados para lidar com ambientes beligerantes, não com segurança pública. “O
policial tem preparação, o soldado, não”, afirmou o diretor-adjunto da
Conectas, Marcos Fuchs.
Esse argumento é insistentemente contestado pelos militares.
Em palestra no dia 23 de agosto no Itamaraty, o general Sergio Etchegoyen,
chefe do Gabinete de Segurança Institucional e um dos principais assessores de
Temer na área de segurança, afirmou que mencionar a falta de treinamento dos
militares é balela de especialistas, conforme revelou o site The Intercept
Brasil. “Somos treinados em cima de princípios, de conceitos, com alguns
fundamentos, com muita flexibilidade pra dar agilidade mental pra poder
resolver o problema. Então, se der pro militar um problema de segurança
pública, ele vai se adaptar e vai fazer”.
Enquanto não há uma definição do presidente, neste momento, o
Exército auxilia as polícias do Rio de Janeiro na patrulha de ao menos duas
comunidades. Nos últimos dez anos, já foram ao menos 12 intervenções
semelhantes no Estado, além de atuações na Bahia, Espírito Santo e Rio Grande do
Norte. Um caso polêmico recente foi a convocatória de militares para reprimir o
protesto contra o Governo Temer em maio em Brasília.
Fonte: El País
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