Cuidado ao usarem o termo “Privilégio Branco” em um País de imigrantes - Por: Magnolia Calegário
Em geral, no século XIX e XX houve a imigração italiana para o Brasil, com auge entre os anos 1870 a 1920. Quase todos camponeses e pessoas de baixíssima renda. Os imigrantes italianos se estabeleceram no sul e no sudeste do Brasil. Além dos italianos, outros imigrantes de países que assim como a Itália, passavam duras dificuldades, vieram para o Brasil, entretanto os italianos vieram em maior número. O que fez com que fosse maior esse número foi detalhes como a língua, parecida com a brasileira e a religião católica. Os EUA chegaram a receber muitos imigrantes nesse período também.
De um lado, os países europeus passavam por dificuldades econômicas e sociais, de outro, a escravidão acabou e os senhores de terra ficaram sem mão de obra para os serviços pesados. A ideia dos governos italiano e brasileiro era a migração dos italianos para o Brasil. Pois de um lado, a Itália não podia lhes dar direitos humanos, e de outro, o Brasil precisava de trabalhadores para substituir os escravos.
Meus bisavós vieram do norte da Itália. Em tempos de crise e fome, apareceram pessoas com promessas de trabalho no Brasil. Em suma, meus bisavós atravessariam o oceano para morar “nas Américas”, onde teriam casa e salário. Essas viagens foram incentivadas pelos fazendeiros e pelo governo brasileiro. Mas aí que vem as chaves as senzala desses novos escravos: a passagem de navio teria que ser paga em prestações, descontadas do salário dos meus bisavós, e de tantos italianos do norte que, entre morrer de fome ou de tiro, resolveram vir para as ainda temidas e exóticas Américas.
As condições das embarcações não eram muito diferentes das que, outrora, levavam e traziam os escravos na época da escravidão. Superlotados, onde milhares morriam de doenças, e tinham seus corpos jogados no mar. Comida insalubre. Água escassa.
No século XIX, aqui chegaram os italianos que sobreviveram, e se instalaram em pequenos barracos de madeira improvisados. Só podiam comprar comida na mercearia do próprio senhor de terra, lugar onde os preços eram bem maiores. Com o baixo salário que recebiam, e ainda com a viagem para pagar em prestações, rapidamente se endividavam. Trabalhavam não para receber algo, mas para tentar pagar algo.
Os senhores de terra não estavam acostumados com trabalhadores, e sim com pessoas que foram escravizadas. Dessa forma, começou a dispensar aos italianos o mesmo tratamento que dava aos escravos: surras e outros castigos cruéis. Os trabalhadores logo se revoltaram contra tal tratamento.
Aqui no meu Estado, o mais populoso em termos de descendentes italianos, já ouvi inúmeras vezes o termo “italiano ignorante”, “italiano burro”, “italiano fedorento”, termos depreciativos que os negros também são vítimas em todo Brasil.
Meus bisavós e avós paternos passaram fome e miséria. Pertenço a última geração da família, que felizmente, conseguiu prosperar, mesmo ainda com tanta dificuldade pela qual passamos. Vivo com minha mãe em um bairro humilde e detesto quando falam que sou “privilegiada”. Principalmente com zombaria. Minha cor branca é um privilégio sim: mas apenas à primeira vista, depois que descobrem que por trás da minha cor branca existe pobreza e dificuldades, o quadro muda. Alguns olham torto, outros dizem: “Ah, pensei que você fosse parente dos Calegário de outro lugar” “Você mora lá? Nunca ouvi falar desse lugar”. Eu lutei horrores para fazer Faculdade, minha mãe vendia as coisas em casa, porque ela não tinha ajuda de ninguém. Quando não passava em uma prova, entrava em pânico.
Não, meu namorado nunca me escondeu. Não, eu nunca fui chamada de macaca. Mas sim, eu sou descendente de pessoas que foram escravizadas. E minha vida não é fácil. E peço em nome de todas as pessoas da minha situação que parem de achar que eu sou “burguesa”, que eu “faço parte da máquina que explora”. Por que não é verdade.
Nos Estados Unidos, eu seria chamada de “White Trash” (em livre tradução, “Lixo Branco”). Os EUA também receberam imigrantes, que também foram explorados, e fadados a morar em bairros pobres. Bairros pobres só de italianos, bairros pobres só de porto riquenhos... Que recebem o apelido de “chicanos”. Assim como bairro só de negros. Felizmente esse quadro tem mudado nos últimos anos. Mas nos Estados Unidos dá pra VER a segregação nos bairros e OUVIR a segregação na boca das pessoas (termos como “White Trash” e “Chicanos”). Imigrantes tão segregados e pobres quanto negros. Nosso racismo sempre foi velado, escondido. Fazer piada racista só dentro de casa, ou entre amigos. Felizmente hoje os grupos negros estão falando sobre o assunto no Brasil.
O que quero dizer com esse texto é que há algo mais profundo que a tonalidade da pele para nos atentarmos no que tange racismo: a descendência dos grupos étnicos, especialmente em um país com tantos imigrantes. Imigrantes que foram para os países ocupar subempregos ou trabalho análogo à escravidão deixarão um legado de pobreza para seus descendentes. Que não necessariamente serão negros.
Referências:
GIRARDI, Giseli. GOMES, Augusto. Geografia e História do Espírito Santo. Editora FTC. 2008
FREYRE. Gilberto. Casa Grande & Senzala. Editora Global. 2019
RADUNZ, Roberto. HERÉDIA, Vânia Beatriz Merllotti. Imigração e Sociedade: Fontes e Acervos da Imigração Italiana no Brasil. Editora Educs. 2014
HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. Editora Companhia das Letras. 2017.
O TERMINAL. Dirigido por Steven Spielberg. Atores principais: Tom Hanks, Catherine Zeta-Jones e Stanley Tucci. Ano: 2004.
HISTÓRIAS CRUZADAS. Dirigido por: Tate Taylor. Atores principais: Viola Davis, Victoria Spencer, Emma Stone. 2011.
Autora do Livro: A Família e o Direito Brasileiro Oitocentista - Reflexos na Contemporaneidade?
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