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Coluna da Magnolia Calegário: História do Direito: As Rodas


A HISTÓRIA INDIGNA DAS RODAS
O PAPEL DA INFÂNCIA NA SUBSTITUIÇÃO DO PODER DO PATER PELO PODER ESTATAL NO BRASIL

Criança Abandonada e a Belle Époque

No Brasil Colônia e em grande parte do Brasil Império, crianças e pobres eram tutelados pela Igreja, através das “rodas”. Com a Ilustração e o ideal sanitarista, que denunciava a insalubridade das rodas, propõe maior atuação Estatal. Assim, o Estado cria orfanatos e casas de acolhimento para crianças e pobres:
Ao longo de todo período colonial e grande parte do Império, as crianças abandonadas e a população pobre eram preocupação e objeto exclusivo de domínio da Igreja, não havendo relevante participação do Estado para tal fim. Nesse período, especificamente em relação à criança e ao adolescente, destaca-se o estabelecimento das “rodas”, que só entram em declínio a partir da segunda metade do seculo XIX, diante da nova concepção ilustrada que, permeada pela voraz crítica médica em relação à insalubridade das instalações dos referidos estabelecimentos, propõe maior atuação estatal no recolhimento da infância, por meio da criação de orfanatos e outras instituições de acolhimento à infância e à juventude abandonadas.  (PATRÃO, 2016, grifo nosso)

Crianças Indesejadas e a Sexualização da Mulher Negra

Entretanto, o principal motivo da filantropia higiênica com o combate às “rodas” e criação de orfanatos pelo Estado era a conduta das famílias ricas. Nesse caso, a “casa dos enjeitados”, originalmente criada e mantida pela Santa Casa de Misericórdia, desde de 1738, o pater tinha ainda mais poder, pois poderia acobertar gravidez indesejada da filha, filhos fora do casamento ou com escravas (submissão da mulher):

Verifica-se que a preocupação com a conduta das famílias abastadas era o verdadeiro propósito da filantropia higiênica no trato com a infância “perdida”. Nesse sentido, a “casa dos enjeitados”, originalmente criada e mantida pela Santa Casa de Misericórdia, desde de 1738, no Rio de Janeiro, e a partir de 1726, na cidade de Salvador, tinha sido fundada, na verdade, para proteger a honra da familia colonial, não obstante o aparente objetivo assistencial de recolher as crianças desamparadas . Mediante as “rodas”, portanto, o pater familias poderia expressar o seu poder supremo, seja por meio da submissão da mulher – com o eventual acorbetamento de indesejada gestação da filha solteira – ou pela ocultação segura de suas transgressões sexuais, em que a prole ilegítima porventura gerada – seja em razão de relacionamento com escravas ou não – poderia ser prontamente rejeitada. (PATRÃO, 2016).

No patriarcado foi fomentado a sexualização da corpo da mulher negra. Neste ponto é importante destacar uma das principais vertentes do Feminismo Negro, que é a erotização da mulher negra. Isso mostra que esse peculiar vestígio do patriarcado combinado com a escravidão perdurou até os dias atuais. Nos meios de comunicação, como novelas, filmes, programas de TV, a mulher negra é vista, não raro, de maneira sensualizada.

Agora abraçando esse cenário vamos virar a lente para nós mulheres pretas em especial: porque nós somos vistas de forma tão mais sensualizada? Quem de nós nunca ouviu da boca de um homem branco (com aquela cara de quem vai te comer com farinha), “Eu adoro uma mulata”, Porque você não desfila no Carnaval?!”, “Morenas são as melhores!”. E nesse sentido que estamos discutindo aqui sabemos que “as melhores” significa (e inclusive o porque de sermos citadas como “morenas”), creio que todas nós já ouviu algo do tipo. Apesar de estarmos no Brasil, que é um país tão miscigenado, ainda prevalece o esteriótipo de raça, que determina que a mulher negra tem sempre lábios grandes, bumbum avantajado, “corpo atraente” e o pior: ele vem acompanhado da ideia maluca de que ela está disponível (por ser mulher), e de que é isso que ela quer (porque o fenótipo dela sugere  que ela é safada). E mesmo que seja, porque ela não pode ser? Constatando-se que ela seja sexualmente consciente e ativa, o valor dela na rodinha vai ser só o da “gostosa que pegaremos”, e só esse mesmo. (MOURA, 2015)

Há relatos atuais de mulheres negras que foram subjugadas em seus relacionamentos pelo fato de serem negras:
Enfiavam objetos no meu cabelo, perguntavam se podiam usá-lo para limpar panelas, sopravam pó de giz no meu rosto dizendo que era pra eu ficar branca. Nenhum “namorado” jamais me assumiu publicamente. E é claro que nada disso acontecia só comigo. Eu assistia todas as outras meninas negras da escola passarem por isso. Algumas de maneira até mais violenta, porque também sofriam gordofobia, opressão pela qual eu não passava e que eu ainda nem sabia que existia. (MOURA, 2015)

Criança Abandonada e a Belle Époque – O Declínio das Rodas, a Crítica Higiênica, o Estado, a Honra da Família.

A adoção por parte do Estado de políticas para acolher a infância e juventude, baseado na crítica higiênica, trouxe consigo o declínio das “rodas”. Não há relação entre o a Lei Ventre Livre e o a ideia de que o escravo abandonava a sua prole como forma de oportunizar um futuro de cidadãos livres aos filhos. enjeitados filhos de escravos consistiam em parcela insignificativa, sendo a maioria representada por brancos:

Desmistifica-se, com tais dados, a ideia de que o escravo abandonava a sua prole como forma de oportunizar um futuro de cidadãos livres aos filhos. Não há interligação entre a diminuição do número de expostos a partir de 1870 e a promulgação do Ventre Livre, o corrida em 1871, conforme deseja transparecer Jurandir Freire Costa (2004). Na realidade, o declínio das “rodas” ocorre em virtude da crítica higiênica e da consequente adoção, por parte do Estado, de outras políticas públicas para o acolhimento da infância pobre. Isso porque, após a promulgação da Lei do Ventre Livre, apesar da diminuição do número de expostos, houve o aumento proporcional de crianças negras e mestiças abandonadas em relação às brancas, razão pela qual o desamparo dos filhos de escravas não guardava relação quanto aos eventuais sentimentos afetivos com o bem estar desses. Os enjeitados filhos de escravos consistiam em parcela insignificativa, sendo a maioria representada por brancos. (PATRÃO, 2016)

As crianças negras não eram abandonas pelos pais, após a Lei Do Ventre Livre, e sim por outros interessados. Havia assim a preservação da honra da família colonial, em que tais crianças, provavelmente, representavam deslizes morais das mulheres de elite ou relacionamentos extrapatrimoniais dos patriarcas, inclusive com escravas. Portando abandoná-las para a “liberdade” era uma solução Quando não por tais motivos, havia também a imposição do senhor colonial, onde a escrava era obrigada a abandonar a prole diante do habito de se utilizar da situação puerperal da escrava como ama de leite:

Por isso, mencionar-se preservação da honra da família colonial, em que tais crianças, provavelmente, representavam deslizes morais das mulheres de elite ou relacionementos extrapatrimoniais dos patriarcas, inclusive com escravas, fato que justifica o elevado índice de mestiços. Ademais, quando não motivado pela intenção de acobertamento de eventuais aventuras sexuais do homem em branco, produzia-se o abandono do filho da escrava não por desejos nobres em garantir ao infante a futura condição de liberto, mas sim por imposição do senhor colonial, diante do habito de se utilizar da situação puerperal da escrava como ama de leite, seja para amamentar a prole branca de elite ou alugando-a para outras famílias, que porventura necessitassem de tais serviços (COSTA. 2004, citado por PATRÃO, 2016, grifo nosso)
Criança Rejeitada – O Declínio das “Rodas” através do Ideal Ilustrado e da Política Higienista

Apenas a partir da segunda metade do século XIX, momento em que a “casa dos expostos” já se encontrava em franco declínio, que a proporção de crianças brancas diminui, sendo ultrapassada pela de mestiças e, a partir das duas últimas décadas, pelas de negras. Nessa época, contudo, a imagem infantil já se encontrava recodificada pelo ideal ilustrado, o que explica a gradativa perda de significado das “rodas”, em especial, após vários estudos que apontavam a relação delas – comumente utilizadas como fonte estatística pelos higienistasnos seus estudos sobre a miséria – com a mortalidade infantil, causada pela irresponsabilidade dos adultos no trato com as crianças, conforme tese apresentada por Haddock Lobo, em 1846, na Academia Imperial de Medicina (COSTA, 2004 citado por PATRÃO, 2016, grifo nosso).

Política Higienista e Criança Abandonada: Interesses Maiores

A tutela da infância durante a belle epoque serviu também como ferramenta para a diminuição do poder do patriarca. É claro que as rodas traziam sérios riscos as crianças pela falta de higiene, porém algo  maior estava por trás. Visava-se combater 1) promiscuidade familiar; 2) poder absoluto do pai; 3) irresponsabilidades dos adultos com as crianças. Em suma, o Estado impunha sua força, limitando o poder do patriarca absoluto. Dessa maneira, o núcleo familiar , originalmente estruturado para servir ao pai-proprietário, de agora em diante deveria ser reajustado para cumprir os interesses da nação, readequando-se aos novos hábitos impostos pela Ilustração:

A evidente pobreza das instalações e dos meios de instalações e dos meios de manutenção tornava as rodas um verdadeiro “foco autóctone de mortalidade” na infância (Costa). No entanto, por detrás da aparente preocupação com a puerícia , a crítica higiêncica trata uma silenciosa batalha contra a promiscuidade familiar , o poder absoluto do pai e eventuais irresponsabilidades dos adultos no trato com as crianças. Isso tem como base, assim como na reconstrução das relações de convivência familiar e comunitária da família colonial, a tentativa de o Estado impor sua força, assim, limitando o poder do absolutismo patriarcal, em que o núcleo familiar , originalmente estruturado para servir ao pai-proprietário, doravante deveria ser reajustado para cumprir os interesses da nação, readequando-se aos novos hábitos impostos pela ordem ilustrada. (PATRÃO, 2016, grifo nosso)

Tutela da Criança e Obediência ao Estado (do Pater para o Estado)

Dessa forma, foi-se caminhando para uma perspectiva em que o núcleo familiar , não servia mais ao pai pai-proprietário, e sim ao Estado, readequando-se aos novos hábitos impostos pela Ilustração. A feição da família foi mudada. Dirigida, sobretudo, às crianças, a educação física, moral, intelectual e sexual proposta pelos higienistas direcionou o pater familias no sentido de adequar-se às funções sentimentais e de proteção da criança:

No Brasil do século XIX o dispositivo médico desenvolveu um projeto de transformação familiar por meio de uma politica higienista que iria afetar o universo masculino. Jurandir Freire Costa, ao analisar o impacto desse projeto normativo, argumenta que a higiene extravasou os limites da saúde, modificando a feição social da família para adaptá-la à ordem urbana. Dirigida, sobretudo, às crianças, a educação física, moral, intelectual e sexual proposta pelos higienistas direcionou o pater familias no sentido de readequar-se às funções sentimentais e de proteção da infância. (ARAÚJO,1993)

Sanitarismo e Criança Pobre e Criminosa

Outras medidas direcionadas à infância, como a criação de mecanismos para o controle da infância e juventude abandonada e infratora, em face da propagada relacionando pobreza e criminalidade:

Da mesma forma que a “Casa dos Expostos” não atendia a pretensão estatal de imposição definitiva da ordem ilustrada na sociedade brasileira, a preocupação com as condições sanitárias  no espaço urbano ganhava, também, relevante destaque. No caso, a política higienica travou intensa batalha: (1) “pela remodelação da moradia popular”, a partir do combate aos cortiços; (2) “esforçava-se em favor da vacinação em massa”, em especial contra a varíola; (3) “criou mecanismos para o controle da infância e juventude abandonada e infratora”, em face da propagada relação existente entre pobreza e criminalidade (RIZZINI, 2008 citado por PATRÃO 2016)


REFERÊNCIAS:

ARAÚJO, Rosa Maria Barbosa de. A vocação do Prazer. Rio de Janeiro. Rocco, 1993.
DOURADO, Anne. A Erotização e a Objetificação da Mulher Negra e a Sexualidade Feminina como um Tabu. In: Blogueiras Negras; Identidade. Disponível em: http://blogueirasnegras.org/2014/02/21/a-erotizacao-e-objetificacao-da-mulher-negra-e-a-sexualidade-feminina-como-tabu/.  Acesso: 19/03/2018.
PATRÃO, Benedito. DE DEBRET A MARC FERREZ. Editora Folha Seca. Rio de Janeiro. 2016.

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