'Uso de cocar no carnaval é troca, não discriminação', diz liderança indígena que viralizou na web
Essa é a opinião de Ysani Kalapalo, índigena da região do
Alto Xingu, em Mato Grosso.
Em meio à polêmica sobre o que se "pode ou não"
usar nos blocos de rua neste ano, a ativista dos direitos indígenas comentou
sobre o assunto num vídeo que viralizou na internet ao longo do fim de semana -
alcançou 1,5 milhão de visualizações no Facebook.
Enfatizando que cada povo indígena tem cultura e opiniões
diferentes, Ysani afirmou que, para ela, ver foliões usando cocar no carnaval
não ofende.
"Eu vou falar da minha cultura. Eu sou do povo Kalapalo,
natural do parque indígena do Xingu. Na minha cultura Kalapalo, pelo que eu
vivi e vi, não tem nada demais usar cocar e adereços indígenas no
carnaval", afirma ela, no vídeo.
"Quando um branco vai para a nossa tribo, ele usa cocar
e adereços e a gente não acha nada de ruim. E quando a gente vai para a cidade
a gente usa roupa, óculos, tênis de marca", completa, afirmando que
racismo é "quando branco chama o índio de bicho e incapaz" e
"tira o índio da sua terra".
Em entrevista à BBC Brasil, a jovem de 27 anos disse que
conversou com outros membros da aldeia antes de fazer o vídeo.
"Eu consultei minha família e outras lideranças
indígenas da tribo, principalmente da tribo Kalapalo. Depois disso, a gente
decidiu gravar o vídeo em grupo. Só eu apareço, mas tomamos a decisão
juntos", contou.
A opinião contrasta com a de outra ativista dos direitos dos
indígenas. Em vídeo divulgado no YouTube, Katú Mirim, de 31 anos, argumenta que
o uso de cocares e pinturas corporais no carnaval "ajuda a perpetuar o
estereótipo e a hipersexualização da mulher indígena."
Katú foi adotada quando criança por um casal de São Paulo e
batizada como Kátia Rodrigues, mas resgatou as origens indígenas depois de
adulta e adotou o nome Katú Mirim, em cerimônia na aldeia Guarani Mbya, no
Jaraguá, em São Paulo.
"O que é fantasia? Criação imaginação, ficção, algo que
não existe. Pessoas, culturas, não são fantasias, porque elas existem. Usar a
fantasia de índio é uma falta de respeito, não é uma homenagem. Vocês estão
ajudando a invisibilizar uma luta, a alimentar estereótipos, a violência, e o
estupro", afirma ela no vídeo.
A partir daí a campanha com a hashtag
"ÍndioNãoéFantasia" ganhou as redes sociais. Um vídeo postado pelo
site Catraca Livre criticou, além do uso de adereços indígenas, fantasias de
cigano, Iemanjá e árabe, por serem consideradas preconceituosas.
A visão de Ysani: trocas culturais e celebração
Ysani Kalapalo critica a campanha pela proibição categórica
de fantasia de índio, porque, para ela, isso soa como se fosse a opinião dos
indígenas como um todo. E destaca que não existe apenas "uma população
indígena", mas sim 305 etnias diferentes no Brasil.
Ela compara o uso de fantasias no carnaval ao uso de adereços
de outros povos que os Kalapalos adotam numa cerimônia chamada Hagaka.
"A gente vive essa troca de cultura. A Hagaka é um
momento em que a gente se fantasia de várias culturas, de bichos e de não
indígenas também. É parecido com o carnaval. Se você for analisar na história
da humanidade, o que a gente mais faz é troca. Troca de objeto, de
conhecimento, de cultura, entre pessoas e nações. "
Ysani descreveu ainda outra cerimônia realizada entre tribos
no Xingu que também envolve o que chama de "troca cultural". "O
Uluki é uma cerimônia em que fazemos trocas com outras tribos, de bens e de
conhecimentos. Isso faz parte."
"Nós não achamos nada demais no uso dos cocares no
carnaval. Primeiro eu acho engraçado quando vejo, e legal ao mesmo tempo. As
pessoas que discriminam o índio não vão usar cocar. Se está usando, é porque
gosta e admira. Eu enxergaria dessa maneira."
Ysani admite, porém, que o tema é controverso. Desde que
publicou o vídeo, recebeu feedbacks positivos, mas também muitas críticas.
"Você faz ideia ou tem visto a chuva de horrores e
deboches e racismo contra nós indígenas!?!", questionou uma pessoa na
página dela no Facebook. Alguns foram mais agressivos: "Vergonha, você é
uma vergonha! Parabéns, Ysani, agora você já pode ir fazer papel de índio na
próxima novela, elas amam isso", disse outro usário da rede social.
"Os feedbacks negativos são mais vindos de indígenas que
não têm muita familiaridade com a aldeia, que não cresceram dentro da aldeia.
Que não convivem com a tribo. Eles se doem com isso. Dos indígenas tribais, só
tenho recebido agradecimentos", afirmou Ysani.
Ela também rebateu as críticas de que a representação dos
indígenas no carnaval é estereotipada. "Não vejo dessa forma. Cada um
idealiza o indígena de um jeito. Até porque somos diferentes mesmo um do outro,
nas culturas tribais."
Ysani disse que gosta de carnaval e conta que já desfilou na
Sapucaí. "No ano passado, a Imperatriz Leopoldinense homenageou os povos indígenas
do Xingu. Fui uma das homenageadas e desfilei. Foi muito legal. E também acho
bonitos os blocos de rua."
Conhecimento para defender direitos indígenas
Ysani vive entre a cidade e a tribo. Ela concluiu o ensino
médio e fez cursos técnicos na área de tecnologia da informação. Atualmente,
trabalha em projetos ligados a mídias digitais - está criando uma rede social
chamada Uitigu- e dá palestras sobre direitos indígenas.
"Ao contrário do que muita gente pensa, que o índio vive
na mamata do governo, a gente tem que trabalhar e muito quando vive na
cidade."
Em 2008, ela criou uma campanha nas redes sociais com o lema
"orgulho indígena", voltada a elevar a autoestima das populações
indígenas.
Ysani saiu pela primeira vez da tribo Kalapalo, no Parque Indígena
do Xingu, aos 12 anos, com os pais e os irmãos. Na época, não falava uma
palavra de português. A família foi morar em São Carlos, no interior de São
Paulo.
O objetivo era entender a "cultura dos brancos",
para melhor defender os interesses dos índios das aldeias. E também levar
conhecimento indígena para os povos da cidade.
"Os Kalapalo não tinham contato com a cultura não
indígena. E meus pais tomaram uma decisão difícil, de trazer os filhos para
conhecer outra realidade. Eles achavam que se pudéssemos conhecer a cultura dos
brancos, poderíamos nos defender melhor", diz.
"Precisamos de indígenas para falar sobre coisas como
essa para não indígena. Os antropólogos continuariam falando em nome dos
índios, se não fossemos para as cidades."
Ysani conta que, quando começou a ir à escola, virou
"atração" entre as outras crianças.
"Fui mais ou menos bem recebida. Mas nem por isso vou me
vitimizar. Foi um momento de aprendizagem. Perguntavam muito da cultura e eu
praticamente não falava nada de português. Depois, na adolescência, eu pude
explicar coisas", disse.
"Português é uma linguagem complicada. Mas hoje em dia,
depois que a gente aprendeu a trabalhar em português, eu dou palestras, eu levo
isso como uma motivação."
Problemas indígenas
Ysani disse que gostaria que problemas como demarcação de
terras, falta de acesso à saúde nas tribos e apropriação da cultura indígena
por igrejas recebessem a mesma visibilidade dada à polêmica sobre fantasias no
Carnaval.
"Tem tanta coisa séria rolando. A saúde indígena está
cada vez mais precária. Não tem mais verba. Temos problema de violência e
entrada de drogas nas aldeias. E tem muito indígena deixando de falar a língua
nativa, porque as igrejas falam que é cultura do capeta", afirmou.
Apesar dos problemas, ela diz que a cultura Kalapalo está
sendo mantida. E celebra a troca de experiências entre indígenas e pessoas das
cidades que desejam conhecer mais sobre a cultura deles.
"Na tribo da minha família tem em torno de 80 pessoas.
No momento, eles estão em festa. Comemorando, celebrando, recebendo visitantes
de vários lugares. A minha aldeia recebe pessoas que querem passar um tempo lá.
A gente faz troca de cultura, ensina e aprende."
Fonte: BBC Brasil
Nenhum comentário