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'Coisa Mais Linda' segue ecoando a voz da mulher na Netflix


Na terceira estrofe da solar Garota de Ipanema - a célebre canção da Bossa Nova composta por Antônio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes - a ponte nos encaminha para dois versos um tanto melancólicos: "Ah, por que estou tão sozinho? / Ah, por que tudo é tão triste?". É exatamente assim que Coisa Mais Linda, a série nacional da Netflix, chega à sua segunda temporada na próxima sexta-feira (19). Após uma estreia radiante, e também de impacto em 2019, os seis novos episódios entram na plataforma partindo de um fato trágico para bagunçar a vida das protagonistas da trama: o feminicídio que ceifa a vida de Lígia (Fernanda Vasconcellos).



A morte de uma mulher é apenas a ponta do iceberg do universo desta série original que traz, desde a primeira temporada, mulheres em papéis principais para abordar questões como racismo, empoderamento e machismo em pleno Rio de Janeiro dos anos 1960, tendo como pano de fundo o surgimento do movimento da Bossa Nova. Aproximando-se de uma narrativa de novela para o streaming, Coisa Mais Linda se encaixou no formato seriado com propriedade.

"Acho que, de fato, existe uma estrutura narrativa que se assemelha um pouco à linguagem das novelas. Mas existe um formato de série, uma estética de cinema - já que trabalhamos com uma produtora que faz cinema - que tem uma fotografia, um visual que é muito impactante", explica a atriz Maria Casadevall ao Jornal do Commercio, que interpreta Maria Luiza, a dona do clube de música Coisa Mais Linda. Para ela, as questões abordadas na trama são para provocar o público, como foi o feminicídio de Lígia.

"Habitando esse corpo mulher, nós sabemos que vivemos esse medo constante - claro, que em diferentes contextos de cada mulher, com seus recortes de classe, de raça - mas parece que vivemos sempre 'à espera' de uma ação de violência que vem a compensar uma ação de emancipação. Acho que foi o que aconteceu com a Malu e com a Lígia, sobretudo. Elas vieram na primeira temporada num processo de ascensão, emancipação, de conquistas, de aprendizados, e todo esse processo é interrompido por essa violência brutal", comenta Casadevall.

Junto ao drama de Malu, vemos Adélia (Phaty Dejesus), sua sócia no Coisa Mais Linda, lidando com questões familiares, e, claro, esbarrando no drama do racismo. "Essa estrutura racista consolidou a 'força infinita da mulher negra' - essa coisa de 'a mulher negra aguenta', 'ela não chora' - e muitas vezes eu me vi reproduzindo isso. (...) E trazer Adélia com essa carga emocional, para mim, também é um exercício. A mulher tem o direito a fragilizar, a chorar, a acertar e errar, e o que deixa forte é como você transforma isso, se transforma, e evolui a partir disso. Não acho que lágrima, choro, tristeza, enfraqueça alguém. Eu acredito no oposto", argumenta Phaty.

Com o racismo em pauta nas últimas semanas, Pathy Dejesus também comentou a questão da representatividade negra no audiovisual: "Eu tenho uma vida artística de 25 anos - 27 anos, para ser mais exata - e desses anos, eu tenho quase 10 como atriz, que é relativamente pouco perto de outras mulheres. Mas dentro desses dez eu fiz muita coisa e, para você ver um exemplo bobo, é a minha primeira protagonista. (...) Estou muito feliz com a série porque a Adélia traz um núcleo com ela. Existe um núcleo negro agora. E não estamos falando de pessoas que estão de figuração ou algo assim. Todos são personagens construídos, fortes. E eu espero ter uma terceira temporada com todos eles lá. Que isso traga uma reflexão também".

E é exatamente no núcleo de Adélia que a sua irmã Ivone (Larissa Nunes) cresce e chega ao posto de protagonista nesta segunda temporada. Antes uma típica adolescente, a jovem se revela uma artista de talento e, com a ajuda de Malu, pode ter a chance de provar seu valor numa indústria dominada por homens. "Eu vejo muito a Ivone como um possível retrato de uma juventude negra dos anos 1960. Por mais que ela não entenda muito bem algumas questões, ela entende a realidade dela, de onde ela veio, e é muito lúcida em relação a isso. Essa aproximação que ela tem com a Malu revela uma maturidade que na primeira temporada nós não podemos ver, mas que, ao longo da segunda, veremos esse processo de desabrochar", analisa Larissa.

Além da sororidade, a intérprete de Ivone também enxergou a força que a nova temporada de Coisa Mais Linda pode trazer às mulheres: "Acho que tem coisas que podem ser melhor elaboradas quando entendemos que as mulheres são diversas. E mais do que isso, entender o momento presente. Estamos falando de violência doméstica, feminicídio, entendendo o contexto da quarentena, onde esses índices de violência doméstica aumentaram drasticamente, entendendo o debate levantado agora em relação ao racismo e a participação da sociedade em relação a esta luta. E isso, para mim, e para várias outras mulheres negras, sempre foi uma luta constante. Então, eu gosto muito da possibilidade desses temas terem um grande alcance através desta série".

O espaço da mulher no mercado de trabalho também é um dos enredos de Thereza, personagem vivida por Mel Lisboa. Nesta temporada, a feminista se torna apresentadora de rádio. "Na primeira temporada, Thereza teve a trajetória no trabalho dela, em que ela conseguiu modificar aquele ambiente, conseguiu de certa forma trazer outras mulheres. E, na segunda temporada, ela enfrenta outro desafio. Um ambiente novo de trabalho, um meio de comunicação de massa, em que você fala para muita gente, e onde a mulher não tem voz. Essa coisa dela estar numa rádio, uma mulher dando a notícia, e expressando a sua opinião, eu creio que é bem ficcional, ainda mais na década de 1960", diz a atriz.

POR MAIS REPRESENTATIVIDADE

Com estas quatro mulheres fortes como protagonistas, Coisa Mais Linda também tem ampliado a presença feminina em seus bastidores. Começando por alguns roteiros desta temporada, assinados por Patricia Corso e Mariana Tesch. “Acho que temos uma sensibilidade maior no texto sim. Acho que nessa temporada, inclusive, houve um cuidado de aumentar as mulheres, não apenas no roteiro, a direção é dividida meio a meio. Temos o Caito Ortiz e a Julia Rezende. Mas também, na equipe da segunda temporada, a presença feminina aumentou muito. Tivemos muito mais mulheres no set. E é uma série importante para isso. Nós vamos aprendendo”, ressaltou Mel Lisboa.

Logo após a resposta de Mel, Pathy Dejesus fez uma ressalva importante sobre uma possível próxima temporada. “Eu ainda sinto falta de um olhar negro, de uma mulher negra envolvida nesse projeto, mas acho que ainda chegaremos lá. Acho que nada mais real do que colocar a narrativa na mão, nos olhos e na boca de quem realmente vive aquilo”, ansiou a atriz.



Fonte: Jornal do Comércio

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