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CRÔNICAS DE HOSPÍCIO O DIREITO À DIGNIDADE HUMANA


Caros Leitores,
Essa série de Crônicas são fruto de uma pesquisa de campo feita em um Hospital Psiquiátrico no ano de 2008, na qual foram feitas três visitas ao mesmo, sendo as observações conteúdo dessa série.
A intenção desse trabalho, além de descritiva, é apontar a diferença de tratamento dispensado aos doentes do SUS e da Rede Particular no espaço visitado, as diversas irregularidades cometidas que foram catalogadas durante o campo, que ferem os direitos humanos e os direitos fundamentais.
Esta é a última da série de crônicas elencadas nesta coluna. Espero que tenham apreciado este trabalho de campo. - Magnolia.

Episódio de hoje: Pacientes Inteligentes

Chegou um menino no Hospício, estudante do Ensino Médio. Não conseguia dormir a dois meses e começou a ter desmaios, crises de choro e depressão. Um fruto maduro da árvore social pós moderna, que de tão maduro, caiu precoce no chão, se despedaçando. Retrato do futuro: quinze anos, entupido de comprimidos para se concentrar, para acordar, para dormir. Notas baixas.
Transtorno Borderline. Quociente Intelectual 208. Feito para pensar e não para repetir. Feito para criar e não copiar. Feito para questionar e não obedecer. Tudo o que os donos da sociedade pós moderna  (3% de bilionários que concentram a maior parte do capital do planeta) não queriam: alguém que pensasse.
Os donos da sociedade pós moderna queriam alguém que repetisse o que 97% da sociedade repete todos os dias, e que terminasse trabalhando para viver e vivendo para trabalhar. Na escola era o excluído, o estúpido.
Bem vindos ao século XXI e as suas mulas. Eis que os cavalos selvagens são mandados para lugares como aquele Hospício. 
Além de inteligente, era bonito, alto e quando eu o vi pela primeira vez, mesmo estando ele no meio daquela imundície, sabia que ele iria muito longe. Um dia pedi para que ele me contasse como foi seu primeiro dia no Purgatório (Ala Particular). Ele disse que uma psicóloga foi visitá-lo. Foi nossa única conversa, porque ele foi embora rápido do Hospício. Essa foi a cena que ele retratou:
-Olá, bom dia, eu sou a psicóloga. – se apresentou a psicóloga.
-Pode falar. – disse ele.
-Eu vim ver como você está. – disse ela.
-Ah sim. Eu não consigo dormir. Estou a dois meses sem dormir, cheguei hoje. Só durmo a base de injeções que são ministradas aqui no Hospício. Fora isso sou uma pessoa normal. Só isso mesmo.  – disse ele.
- Me falaram que você apresenta choro e depressão.  – disse a psicóloga.
-Qualquer um apresentaria se ficasse tanto tempo sem dormir. – disse ele.
-Me disseram que você já tentou se matar a três anos. – insistiu a psicóloga.
-E qual o problema em sem matar? Eu tinha motivos de sobra. – respondeu ele.
-Quais motivos? – perguntou a psicóloga.
-Eu não tenho tempo para ficar elencando motivos sociologicamente eleitos na cultura ocidental para um ser humano se matar, e depois você falar que minha visão é “relativa”. Em suma: eu vivo em uma sociedade doente, de gente estúpida. Nessa sociedade você é vencedor se souber aplicar bem coisas ridículas como a fórmula de Bháskara. Fora isso você é um perdedor, um merda.  Não importa o que você sente no final das contas, nessa atual fase da cultura ocidental. Mesmo que as pessoas sigam padrões de comportamento culturais absolutamente hipócritas e venham aqui hoje, sentar perto de mim, como você está fazendo, e dizer “Não, você não é perdedor, as pessoas são diferentes blablabla” o mundo vai continuar o mesmo, com as pessoas cada dia mais egoístas e matando uma as outras em nome de uma máquina de moer corpos e gerar dinheiro para 3% dos donos do mundo. Eu estou aqui sendo visto como um fraco, um “lobo doente da alcateia”. E eu tenho ciência disso. Assim como tenho ciência de tudo o que você vai dizer sobre relativização cultural.  Você é hipócrita. No fundo você se sente bem em ver pessoas saindo da linha de produção e sendo massacradas por isso. Como se você fosse uma espécie de “messias” colocando tais pessoas de volta na linha de produção. Te faz sentir bem, como se essa linha de produção fosse o sentido da vida. Não é. Essa linha de produção é o sentido do fracasso da Humanidade. E você e os psiquiatras não passam de cães treinados a latir e obedecer qualquer bosta de livro chamado “Como ser Normal”. Para vocês psicólogos é pior ainda, porque o livro é ainda mais pobre. Se chama “Como viver em Sociedade”. Como se a sociedade ocidental fosse algo muito saudável e funcional. Vocês não tem vergonha não? Olha, eu sei que é seu trabalho tentar “ajudar” as pessoas e tal, mas você não vai conseguir. Tenta os outros quartos. Tem muita gente burra por aqui. – disse ele.
- Estou aqui porque os pacientes me solicitam muito. Você vai precisar de mim e eu não vou poder atender. Mas deixo meu contato, quem sabe você não consegue agendar um dia? – disse a psicóloga.
- Ninguém te chamou aqui e ninguém vai te pedir para voltar. – concluiu ele.
Mais tarde soube que a psicóloga espalhou para todos os enfermeiros que o garoto era perigoso e agressivo, e que era para ninguém entrar no quarto dele. Logo, nas duas semanas que o garoto ficou no Purgatório (vulgo Ala Particular), tempo suficiente para regularizar seu sono, seu quarto não foi limpo, e ele ficou isolado de todos os pacientes a mando dos enfermeiros. É um curto período, mas a psicóloga quis mostrar as garras da forma mais baixa que pode.
Ademais, nos primeiros dias, todas as vezes que o garoto não conseguia dormir e tinha crises de depressão, os enfermeiros falavam: “Quer que eu chame a psicóloga?”. E ele respondia “Chame alguém competente para passar um comprimido para eu dormir, porque eu estou chorando porque não consigo dormir”.
O sonho da psicóloga era voltar “por cima”, em seu papel de “messias piedoso”. Colocando aquele “indisciplinado” garoto de volta “a sociedade”. O garoto realmente tinha provocado uma crise existencial na mulher, para ela avisar aos enfermeiros que sempre que ele chorasse, ligassem para ela. Mas coitada, vai morrer com essa crise existencial.
Assim que conseguiu dormir durante cinco noites sem problemas maiores, eu emprestei meu celular para o garoto e a família veio buscá-lo. Não queria ver ele implorando para devolverem o celular dele, do contrário teria que esperar a visita da família no dia seguinte e fazer uma cena, porque aqueles “urubus” não iam largar R$ 300,00 por dia assim tão fácil.
Instrui ele a falar para a família para não darem minha identidade, em troca da ligação. Ele era uma avis rara, desde sempre sabia que não cederia aos jogos psicológicos do corpo médico do Hospício. Sabia que ele recuperaria as asas rapidamente e voltaria a voar.


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