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CRÔNICAS DE HOSPÍCIO: O DIREITO Á DIGNIDADE HUMANA


Carta de Indulgência

Uma das primeiras visitas que fiz ao Hospício, e fiquei esperando no espaço depois dos grandes Portões o “aval” dos Enfermeiros para entrar no Purgatório (Ala Particular) me deparei com uma cena que nunca esquecerei.
Ao meu lado estava sentada uma menina, com a cabeça inclinava nas próprias mãos, claramente depressiva. Ao lado, os pais, muito preocupados, atenciosos, tentavam animá-la.
- Minha filha, vai ficar tudo bem com você. Aqui eles vão cuidar de você, e você vai sair boa. Confia em mim. O médico falou para a gente vir para cá, ele sabe o que está falando. – disse o pai.
- Onde ela vai ficar? – perguntou a mãe para um dos enfermeiros que ficavam “de guarda” no espaço depois dos grandes portões.
- É SUS ou particular? – respondeu a enfermeira impaciente.
- Como assim? – perguntou a mãe.
- Ela paga plano de saúde ou se consulta de graça? – respondeu a enfermeira mais impaciente ainda.
- Nós não temos plano de saúde – respondeu o pai.
- Então ela fica ali. – a enfermeira apontou para o pátio de Convivência da Ala Pública. Um grande pátio de terra onde todos os internos da Ala Pública ficavam jutos quando não estavam nas celas, desculpe, dormitórios.
O pai e a mãe olharam para aquele Inferno por alguns segundos.
Um pátio de terra com um monte de seres humanos gritando, sujos, machucados.
Os que aquele lugar ainda não havia corrompido totalmente a mente, andavam sujos, machucados e tristes.
Outros não tinham mais nenhuma sombra de sanidade, e ao invés de uma tristeza silenciosa, apresentavam todo o tipo de comportamento bizarro.
Qual das duas condições humanas é a mais triste, eu nunca saberei.
- Mas ela não pode ficar ali! – disse o pai.
- É o único lugar que temos. – disse a enfermeira, totalmente insensível a situação.
- Mas ela vai ficar ali? No meio dos outros? – insistiu o pai, aflito.
Quando ele disse isso, uma tristeza me invadiu. Ele queria uma saída, mas não havia nenhuma.
            - Sim. Ou paga R$ 300,00 por dia e fica na Ala Particular. – disse a enfermeira, insensível.
- Meu Deus ... – disse o pai, levando as mãos ao rosto e chorando. A mãe igualmente desolada, sentou ao lado da filha.
Eu olhei no rosto da menina, e percebi que uma lágrima desceu. No meio de tanta dor que ela já estava passando, aquele episódio foi terrível o bastante para tirar uma lágrima de quem já estava no fundo do poço.
Eu não aguentei, fui para outro canto e chorei. Não consegui pensar, me acalmar, tirar alguma lição do que eu tinha visto e me recompor. Não havia nada a ser aprendido com aquilo, só havia espaço para se lamentar. Quanto sofrimento o dono daquele moedor de almas chamado de Hospício estava gerando. 
Eu não sei o que aconteceu com a menina. Até hoje eu prefiro não saber.

Eu Não Quero Sair Daqui

 - Hoje o Dr. D. veio aqui. – disse “F” no café da manhã.
- E como foi? – perguntei eu
- Legal. Faz dois anos que não vejo ele. – respondeu ela.
-Dois anos? Muito tempo! Você acha que vai sair desse lugar se consultando de 2 em 2 anos? – disse eu.
- Eu vou sair daqui quando eu estiver pronta. Enquanto eu estiver aqui dentro nada lá fora pode me machucar. – disse ela repetindo a maldita frase “enquanto estiver aqui dentro nada lá fora pode me machucar”
- Pode sim. Na verdade o mundo lá fora está te machucando aqui dentro mais do que se você estivesse lá fora.
-Como assim? – perguntou ela arregalando seus olhos.
-Existem coisas maravilhosas que uma mulher jovem como você pode fazer, e não está fazendo. Para sair daqui você precisa se fortalecer. É para isso que está aqui dentro, para se fortalecer e estar apta a viver as coisas maravilhosas que existem no mundo. As paredes brancas desse Hospício precisam ser uma fase na sua vida. Eu sinto que você está se esquecendo disso.
- O mundo me machucou muito. É por isso que estou aqui dentro. Eu não vou sair.  – respondeu ela.
- Não se vê o alto de uma montanha sem escalar, sem sofrer fraturas, quedas. Dói cair. Mas com o tempo a dor da queda fica cada vez menor, pois sabemos que depois dela vem um lindo amanhecer. – disse eu.
- E não tinha caído, eu tinha quebrado todos os ossos – disse ela.
- Quando descemos ao fundo do poço temos duas opções: escalar, ou ficar lá para sempre. O primeiro passo para escalar o fundo do poço você deu: procurou ajuda. Mas e agora? Onde está a ajuda que deveria estar aqui dentro? Não há médico aqui. Este lugar é uma ruína. Sua ajuda não está aqui. Faça qualquer coisa da tua vida, menos fique nesse lugar. Ouça o que estou te dizendo.
           - O que ele disse sobre seu estado? O seu médico de dois em dois anos? – perguntei a ela.
- Ele viu que eu continuo cortada como um bife – respondeu a ela
A paciente morena de olhos verdes sempre estava com os braços enfaixados. Estava a anos no Hospício, mas continuava cortada feito um bife.
- Perguntou o que eu estava sentindo. Eu disse. Ele foi embora.
Sim. Quando os malditos médicos visitavam os pacientes era para fazer um relatório de como estavam se sentindo. Para saber se alguém estava melhorando, e se estivesse, fazê-los piorar em nome dos R$ 300 reais diários.
- Eu disse que tinha planos para o futuro. De me tornar uma enfermeira. – disse ela.
- O que ele disse? – perguntei eu.
- Que eu “nem consigo parar de cortar a mim mesma, como poderia querer ser uma enfermeira?”. – disse ela.
- Você deveria ter respondido: “O senhor nem passa um remédio que preste para minha saúde, como pretende continuar médico?”. – disse eu, com raiva.
Ela riu.
- É sério, não leva esse tipo de coisa. Responde! – conclui eu.



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