CRÔNICAS DE HOSPÍCIO: O DIREITO Á DIGNIDADE HUMANA
A Ala Pública
A
área enorme área gramada que terminava na Área de Recreação era delimitada por
um enorme muro por pequenas frestas cobertas por grades. Lá ficavam os
dormitórios da Ala Pública.
As
pessoas que estavam na área publica eram negras quase em sua totalidade. E
pelos gritos e coisas que falavam através das grades, sempre super lotadas e
mal iluminadas, como um presídio, pareciam padecer de moléstias mentais graves.
Na
Ala Particular o silêncio era sepulcral, na Ala Pública a gritaria
ensurdecedora. O fato de os quartos dos internos dar para uma enorme área verde
vazia fazia muito sentido, uma vez que os gritos dos alojamentos não seriam
ouvidos pela Ala Particular. Talvez pela enfermeira da Área de Recreação, mas
quem disse que ela dá a mínima.
O
fato de haver um salão que fica depois da descida da escada do Refeitório
isolado também fazia sentido, pois logo atrás dele ficava o pátio onde todos os
internos interagiam (sim, aquele pátio que citei na primeira ou segunda crônica),
então os gritos do pátio ecoariam apenas no salão, que sempre estava vazio.
Ademais, atrás do salão tinha uma outra área de terra, de um metro de extensão,
que servia sabe lá para que, mas que ficava ali fazendo meio entre o pátio e o
salão. Depois pensei melhor na função daquela área de terra aparentemente
inútil, pois embora o salão ficasse quase sempre vazio, ele era próximo do
Refeitório dos pacientes da Ala Particular, e ninguém queria gritos do Inferno
no Purgatório.
Interessante
é que o quarto da Senhora C. ficava grudado nesse muro. Era o único quarto
daquele tipo na Ala Particular. Parece que antigamente era uma espécie de
Secretaria, e para lucrar mais 300,00 por dia na Ala Particular, resolveram
jogar o que tinha fora e puseram a Senhora C. lá.
Todo
esse contexto me faz pensar que, o corpo médico que analisou a Senhora C.,
sabendo que a mesma era uma paciente tendente ao isolamento social no sentido
extremo do termo, aproveitou essa situação como desculpa para mantê-la como um
animal enjaulado, cuja manutenção era a mínima necessária para a sua
sobrevivência. “Ela não nos deixa aproximar dela mimimimimimi”.
Isso
tudo era um absurdo. A função daquele local era reintegra-la socialmente, mas
haviam interesses escusos por trás daquela nojeira toda. Portanto, pouco
importava se a Senhora C. estava mais próxima do Inferno (Ala Pública) do que o
resto dos internos do Purgatório (Ala Particular).
A
gritaria da Ala Pública era o dia todo, a noite toda. Não importava o horário
que você passasse pela grande área verde ou se aproximasse dos muros por trás
do salão depois do Refeitório.
Os homens viviam sem camisa e pendurados nas
grades. Não me permitiram entrar na Ala Pública “para minha própria segurança”.
Na Ala Pública, segundo os próprios enfermeiros, ocorriam diariamente desde
espancamentos até estupros. Pois a lotação de cada cômodo era de quatro
internos, porém haviam sempre de 45 a 50 internos. Mas o que causava mesmo
esses atritos entre internos era que além de viverem apertados como em um presídio,
era que não eram separados de acordo com suas doenças. Logo um esquizofrênico
com tendências suicidas ou com tendências assassinas vivia literalmente
“colado” com um depressivo em tratamento temporário.
A
Ala Pública era um presídio “potencializado” em termos de perigo, violência e
caos.
-
Nos não temos o que fazer. Todo dia a rede pública traz mais e mais pacientes e
todos sem dinheiro, sem Plano de Saúde, sem nada. Temos que abrigar. – disse um enfermeiro, enquanto conversávamos
eu, ele e uma interna sentados na grama ouvindo as sandices e tristezas que os
internos amontoados por trás das pequenas grades amontoados diziam:
“Enfermeiro,
eu não tenho onde dormir, pegaram o único lençol que eu tinha, tem como você me
ajudar?” – disse um dos internos.
“Eu
trabalho na Ala Particular” – disse o enfermeiro.
“Mas
eu não tenho a quem pedir!” – respondeu o interno desesperado.
“Eu
não posso, sinto muito” – respondeu o
enfermeiro.
Outros
reclamavam que não havia água, que estavam machucados, que necessitavam de
comida e banho, mas a resposta dos
enfermeiros era sempre a mesma, em todas as vezes que estive na área verde a
observar aquele prédio. Nada me surpreenderia de que fossem “treinados” para
dizer a mesma coisa sempre. Porque eu já vi enfermeiros da Ala Particular
entrando no Pátio de convivência da Ala Pública quando estava entrando no
Hospício. E quem quer fazer o bem sempre encontra um jeito.
Numa
noite em que estávamos eu, uma interna e o enfermeiro a conversar com os
internos da Ala Pública, e eu não tinha nada para fazer por aquelas pessoas.
Não tinha uma centenas de lençóis, lâmpadas, água. Nada. Talvez se eu tivesse
algum conhecimento jurídico à época, teria feito uma denúncia ao Ministério
Público.
Eu
fui andando até o meio do gramado. O enfermeiro e a “F” disseram para eu
voltar, pois poderiam me atirar algo lá de cima.
-
Eu sei cantar. Alguém quer ouvir música? – gritei eu.
Eles
gritaram alegres, e começaram a dizer os cantores que queriam.
-Amado
Batista! Alguma coisa e Marciano!-
gritou um deles.
-
Eu não sei esses – disse eu.
Cantei
Mais uma Vez, do Renato Russo. Cantei do meu jeito mesmo, abrindo os braços
para o ar, como uma borboleta.
Enquanto
eu cantei o prédio ficou em silêncio. Quando terminei continuaram em silêncio,
até uma mulher gritar:
-
Essa menina canta bem! Canta outra pra gente.
Aí
eu fiquei cantando umas duas horas, no frio, até o enfermeiro e a “F” falarem
que eu não poderia mais ficar ali por conta do horário.
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