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CRÔNICAS DE HOSPÍCIO: O DIREITO À DIGNIDADE HUMANA


Espaço de Recreação

Abaixo do Refeitório, ao se descer um corrimão, tinha um enorme salão usado para absolutamente nada. Esse salão tinha um portão que dava para outra enorme área gramada, que também não era usada para absolutamente nada. No fim desta grande área gramada, ficava um cômodo com mesas e cadeiras e uma enfermeira muito entediada.
Ao fundo caixas de papelão com três telas e um quase nada de pincéis e tintas guache. Era a área de Recreação. Um lugar abandonado. Uma das internas disse que eu deveria ir a área de Recreação, porque eu gostava de arte. Depois de visitar a área de Recreação, percebi que ela disse isso da forma mais inocente possível.
Cheguei a área de Recreação. A enfermeira me olhou claramente como se dissesse: “O que você está fazendo aqui?”. E depois perguntou exatamente isso.
- Tenho um parente internado aqui, e vim ver como é a área de Recreação.
- Só internos podem visitar a Área de recreação.
Percebi que ninguém ia aquele lugar e aquele devia ser um “horário de descanso” para ela. Não fui até a Enfermaria perguntar se isto estava no Regulamento da Instituição, porque sabia que aquele lugar foi feito para funcionar mal, ou seja, contra os interesses de qualquer interno e a favor de quem lucrava com aquela nojeira. E nem ia bater boca com ela porque precisava manter a boa convivência para continuar com as visitas. Então menti.
- Sou interna. Quero pintar. – disse.
A enfermeira bufou, do tipo “que saco!”, e disse:
- Tem aquela caixa ali com as coisas.
Fui até a caixa. Cinco vidros de tinta guache e uns quatro pincéis em horrorosas condições e três telas. Peguei uma tela.
- Desculpa, mas essa tela está usada – disse eu.
- Não está não, está branca – disse a enfermeira, com um péssimo humor. 
Me aproximei dela e mostrei:
- Está vendo? Foi pintada umas 20 vezes por outros internos, e depois pegaram uma tinta látex branca e pintaram por cima. A tela está pesada de tanta tinta látex. O último desenho ainda está visível. Alguém pintou uma flor.
Depois falei:
- Porque vou pintar alguma coisa se alguém vai passar uma tinta látex branca depois? Não faz sentido. Agora entendo porque os internos não vem aqui. Vocês acham que tudo o que as pessoas pensam e falam aqui é descartável, não é? Que tudo o sentimos é um quadro em branco? Que tudo o que choramos é um quadro em branco? Que tudo o que sofremos é um quadro em branco? Que tudo o que sorrimos é um quadro em branco? Que nossa humanidade foi anulada por nossas doenças, ou pior, que nossa humanidade foi anulada em favor do dinheiro que essa porcaria de lugar rende. Dinheiro esse que não compra uma tela branca sequer!
            Ela ficou olhando para a minha cara com a mesma cara que estava quando eu cheguei. Depois perguntou, em tom ignorante:
-Você vai pintar ou não vai pintar?
Eu respondi:
- Vou pintar sim.
- Fique a vontade – disse ela ironicamente.
Eu peguei uma tinta guache preta, pintei um pênis ereto, e escrevi embaixo: “Enfia no teu cu e depois pinta de branco”.
Deixei a tela na mesa e fui embora. No outro dia cheguei cedo para visitar meu parente, porque sabia que ele acordava tarde e com isso eu poderia tomar café com as meninas do Refeitório. Encontrei todo mundo rindo com a tal pintura do pênis, até os enfermeiros. 
Fiquei em pânico, preocupada, e perguntei se isso poderia trazer problemas para mim, do tipo não poder visitar mais a Ala.
A “S.” respondeu que depois da “pintura do pênis”, não teria força no mundo que me impedisse de entrar e sair do Hospício a hora que eu quisesse.
Eu fui obrigada a contar com detalhes a história, e acabamos todos rindo no Refeitório, inclusive os enfermeiros da Enfermaria. ´




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