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CRÔNICAS DE HOSPÍCIO: O DIREITO À DIGNIDADE HUMANA


Crônica 4: “Bomba que pode Explodir a Qualquer Momento”

Ideias são perigosas. Porque ideias levam a questionamentos. E questionamentos levam a revoluções.

O termo “bomba que pode explodir a qualquer momento” era quase o único “termo psiquiátrico” que se ouvia no Hospício, já que os médicos quase nunca estavam lá. Os enfermeiros adoravam o repetir.

Um dia perguntei a enfermeira simpática de 40 anos o que era o tal fenômeno da “bomba que pode explodir a qualquer momento”. Ela disse que é quando um interno se aproxima de outro interno, e isso pode gerar problema.

Perguntei o que acontece se a “bomba explodir”, porque até agora não tinha entendido porque um interno não podia tecer relações pessoais com outro interno, e portanto o porque do termo “bomba”.

Ela disse que não sabia, porque “Graças a Deus nunca aconteceu aqui no Hospício, nós sempre temos muito cuidado. Mas, explicando de maneira simples, quando uma pessoa com problemas mentais se aproxima de outra pessoa com problemas mentais elas podem acabar ferindo a si mesmas e as outras ao redor”.

- Qualquer interno? – perguntei eu.
-Não, apenas alguns. Os médicos que definem. A gente só identifica e passa para eles quais internos estão tecendo relações de afeto mais profundas. – disse ela.

Mais tarde percebi que todo interno que se aproximava de outro interno era tido como “bomba”. Todo. Se soubessem que um interno entrou no quarto de outro interno, seja para conversar, seja para trocar produtos de beleza, fazer escova, pegar algo emprestado, logo eles levavam uma advertência de um dos enfermeiros para se desaproximarem e pararem de conversar um com o outro, e a partir dali, teriam que fazer isso escondido, o que era sempre difícil, pois todas as portas ficavam abertas. Então, quando se ouvia barulho de passos, geralmente alguém se escondia no banheiro, embaixo da cama, ou no armário.

Importante salientar que o namoro e o sexo de internos com internos funcionava de forma peculiar. O que chamamos de encontro eram duas pessoas conversando o mais baixo possível, geralmente em algum canto do Hospício, enquanto outro interno ficava de vigia, para que o casal pudesse conversar, se conhecer. Se acaso se apaixonassem e quisessem transar, como qualquer casal, teriam de fazer isso de madrugada, quando tinha apenas um enfermeiro de plantão, e quando este estava dormindo, o que sempre acontecia - no caso do enfermeiro calvo de aparência doente, geralmente estava no quarto da “F” - , e aí um dos internos ia para o quarto do outro ter relações sexuais. 
Era normal internos acordarem no café da manhã reclamando que “O quarto do lado não me deixou dormir ontem!”, e isso sempre era motivo de gargalhada.

A maioria das pessoas geralmente passavam anos a fio naquele lugar, então era normal que namorassem e tecessem amizades, apesar de isso ser visto como uma “bomba que pode explodir a qualquer momento” e por isso tudo tinha que ser feito escondido. Era proibido ter amigos, era proibido ter namorado.

- Mas as pessoas que aqui estão não estão aqui sendo medicadas para que isso não aconteça? Para que não sejam consideradas “bombas”? – perguntei eu.
- Sim, exatamente. Estão em tratamento. Não estão curadas. – respondeu ela.
- Mas e se a doença não for muito agressiva? Tipo, já proibiram as meninas do Refeitório de terem contato mais pessoal?
- Sim, já. A “S.” e a “E”, por exemplo, são amigas, mas são proibidas de frequentar o quarto uma da outra. Somente no Refeitório podem estar juntas, porque estão perto da gente, e se algo acontecer estamos por perto.
Na verdade, “S” e “E” frequentam o quarto uma da outra.  Passam o dia todo juntas. Mas eu não disse nada, pois deveria ser um segredo delas, suponho.
- Entendi. – disse eu.


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