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CRÔNICAS DE HOSPÍCIO: O DIREITO À DIGNIDADE HUMANA


Crônica 3: Pacientes Reclusos

Os enfermeiros eram sempre os mesmos e não havia rotatividade. Um homem calvo, de aparência doente, que aparentava uns 35 anos, e que tinha relações sexuais diárias com uma das pacientes. Uma mulher negra, aparentando uns 40 anos, muito bem humorada, mas irredutível quanto a cumprir com severidade as regras cruéis impostas no Hospício: era interesse do dono daquele pequeno inferno que as pessoas ficassem ali para sempre, por isso não era interessante atendimento médico, nem contato com o mundo externo. Quanto mais abandono, mais dinheiro. Talvez alguns daqueles enfermeiros achassem que estavam fazendo o correto. Tanta coisa incorreta em uma cidade do interior que às vezes esse tipo de negligência com o ser humano passa despercebida.

Perguntei as meninas do Refeitório se já chegaram a fazer “troca” de medicamentos com algum enfermeiro ou enfermeira. Elas disseram que muitas vezes. E disseram que uma das enfermeiras sofria de bulimia aguda, e trocava qualquer remédio por laxante. De fato, todo o tempo em que estive no Hospício, a tal enfermeira estava 40% do tempo no banheiro, e vivia suada e passando mal, com olheiras e procurando algo para comer, e era gorda. Por ter uma enfermeira com essa fragilidade da qual todas podiam se beneficiar, as garotas do refeitório estavam sempre pedindo laxantes.
Sobre s enfermeira bulímica, que já descrevi, não tenho mais palavras para descrever aquele ser humano senão bulimia, pois a mesma era totalmente escrava, mental e fisicamente da doença: só falava de corpo e comida, depois entrava no banheiro, depois falava de homens com os quais iria se encontrar, mas os encontros sempre davam errado, porque “eles não eles não ligavam depois, desapareciam”, e aí ela vomitava e defecava mais e mais. Era o retrato da escravidão mental e física das mulheres contemporâneas, só que em um nível extremo.
Uma mulher muito bonita, de uns 30 anos, que vivia tricotando, sorridente, muito calma e simpática, mas assim como os outros enfermeiros, não questionava as regras. No sábado e no domingo alguns enfermeiros deixavam de ir para outros ficarem. Logo, apenas nos finais de semana havia uma espécie de rotatividade.
Os enfermeiros não eram psiquiatras, logo não estavam aptos a lidar com aquele lugar. As meninas do Refeitório iam dormir bem tarde; uma regalia só delas, mas deviam falar baixo para não acordar os outros pacientes. Pois bem, um dia, deixaram elas comprarem uma grade de cerveja. Elas falavam cada vez mais alto e alto.
Uma senhora, que era um daqueles internos reclusos, de “diagnóstico incerto”, segundo um enfermeiro. De fato, tinha um gênio muito difícil, estava sempre emburrada.  Mas era apenas uma senhora reclusa, do interior, conservadora, e tinha direito de o ser. Conversei com ela. Era de pouquíssimas palavras, mas sempre foi muito educada. Estava sempre muito triste. Neste dia ela usava uma sonda para urina. As meninas falaram que ela “devia estar adorando, já que ninguém cutucava alí a anos”. No refeitório, parecia uma ovelha negra. E como toda ovelha negra, era motivo de piada.
É uma reação normal de qualquer grupo social rechaçar o diferente, porque o diferente nos obriga a refletir. Refletir dá trabalho, porque para refletir, revemos nossos próprios pré conceitos. Rever os próprios pré conceitos é o que o ser humanos mais odeia no mundo. Prefere então achar que o problema está no outro, que é minoria, e não nele, que é maioria. Ou ele que é o mais poderoso economicamente, e o outro que é menos poderoso economicamente, tal força tem a moeda nos dias atuais.
 A senhora costumava dormir as 19:30, como previa o regulamento interno da Ala Particular. As 20:30 foi a Enfermaria reclamar do barulho absurdo (seu quarto era perto da enfermaria, logo, também do Refeitório). O enfermeiro disse que ia conversar com as meninas, entre elas estava eu, já havia conseguido confiança o bastante para passar horas no local. Eu não bebo, por isso consegui acompanhar toda a situação. Ele falou com a gente, as meninas aquietaram-se, mas minutos depois voltaram a falar alto. A senhora saiu do quarto pela segunda vez, para educadamente reclamar. O enfermeiro disse: “Eu já falei.”. Na terceira vez que a senhora saiu do quarto, o enfermeiro gritou com essas palavras: “Se você vier de novo eu vou bater em você”.
Quando ele disse isso minhas mãos ficaram frias.
A senhora rebateu e disse: “Eu preciso dormir! Que tipo de lugar é esse em que eu não posso dormir?” – disse ela chorando.
O enfermeiro se levantou da cadeira e partiu para cima dela, mas ela entrou no quarto a tempo e fechou a porta.
Eu saí do Refeitório e fui a Enfermaria, e perguntei: “Está tudo bem com ela?”
O enfermeiro disse: “Sim”.
“O que ela queria?” – perguntei eu.
“Encher o saco, aquela velha dos infernos.” – disse o enfermeiro.
Eu fiquei sem palavras diante do que ele disse. Será que nunca passou pela cabeça dele que um dia ele iria envelhecer? Me deu vontade de cuspir na cara dele, mas aquele lugar era tão esquisito, tão longe de qualquer coisa digna de um ser humano que eu não consegui organizar minha cabeça e minhas emoções e jogar um cuspe na cara daquele infeliz.

Senhora C.

Era dez da manhã de um domingo quando cheguei ao Hospício, passei pelos grandes portões, e entrei na Ala Particular. Meu parente estava dormindo. Aproveitei a ótima desculpa para andar mais pelo lugar. Uma das enfermeiras, a senhora que aparentava uns 40 anos e era bem humorada, havia ficado muito minha amiga logo nos primeiros dias, e nunca desconfiou desse meu interesse estranho em gastar horas do meus dias de férias no Hospício. Acho que ela já tinha visto de tudo naquele lugar.
Logo que cheguei na Enfermaria ela me recebeu muito bem e disse: “Quem você quer ver hoje?”. Assim mesmo, de forma simples, como uma guia de turismo. Eu como de praxe, mostrei desinteresse, como se estivesse ali de forma desproposital, só passeando e disse: “Não sei... Quem eu ainda não vi??”. A enfermeira olhou para o enfermeiro calvo de aparência doente e perguntou: “Quem é bom de ela visitar hoje?”.
“Tem a Senhora C. Mas eu não recomendo não” – disse ele rindo.
“Porque?” – perguntei eu.
“Não sei... Vai lá conferir ... Hehehe” – respondeu ele.
“Não ouve ele, não tem nada de errado com a Senhora C., é uma senhora que mora aqui no Hospício há 15 anos, só fica trancada no quarto fumando e vendo TV.” – disse a enfermeira.
A enfermeira disse para o enfermeiro me levar até o quarto da senhora C., que ficava nos fundos do Hospício. O enfermeiro me deixou a 10 passos do quarto e foi embora dizendo  “É aquele ali”.
No caminho, o enfermeiro foi me explicando “Tampa o nariz, ela literalmente não abre as janelas a 15 anos, e o cheiro de fumaça é insuportável, e toma banho de dois em dois meses, porque ninguém consegue tirar ela do quarto. Ela não sai nem para comer. ”
Dei duas pequenas batidas na porta da senhora C. Ninguém respondeu. Do lado de fora ouvia-se o barulho da televisão, e o mau cheiro misto de podridão e cigarro. Abri a porta. Disse um sonoro “Oi, tudo bem?” sem nem mesmo abrir a porta inteira. O que vi naquele quarto eu nunca mais quero ver.
O quarto era extremamente abafado e cheio de fumaça, além de um fedor insuportável. A senhora C estava deitada em uma cama de solteiro, com as pernas enroladas em um lençol branco, que de tão encardido estava marrom. Era uma figura caquética; só osso e pele. As olheiras negras cobriam o rosto até o início das bochechas,  todo o quarto estava desorganizado e sujo. O cabelo grisalho, maltratado e embolado estava abaixo da altura do quadril.
Fiquei estática, olhando aquilo tudo, até ela gritar: “Quem é você?”
Depois de alguns segundos ela gritou mais alto, e duas vezes seguidas: “O que você quer?”.
Eu não tive coragem de olhar nos olhos dela. Se há tanta miséria assim em volta de uma pessoa, imagina dentro dos olhos. Também não tive coragem de fechar a porta. Não corri, sai andando, qualquer coisa que ela viesse a fazer (me bater, me arranhar com suas enormes unhas) não seria pior do que eu acabara de ver.
Voltei a Enfermaria de cabeça baixa, indignada.
“E aí, como foi?” – perguntou a enfermeira.
“Ela não quis conversar” – disse eu.
“Não falei” – disse o enfermeiro rindo.
“Porque está tudo tão sujo lá?” – perguntei eu.
          “Nós queremos dar um tratamento melhor a ela, mas ela nos expulsa de lá.” – disse a enfermeira.
“Deveriam insistir, não? Não recebem ordens médicas nesse sentido? Não são informados de como agir com os pacientes através dos psiquiatras?” – perguntei eu.
Eles ficaram em silêncio.




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