CRÔNICAS DE HOSPÍCIO: O DIREITO À DIGNIDADE HUMANA
Crônica 2: As Alas
A Ala Particular
Depois
de passar pelos grandes portões, os enfermeiros curiosos, entrava-se em um
pequeno corredor. No corredor já dava para ver que o ambiente ali dentro nada
tinha a ver com o ambiente externo. Paredes com bom acabamento, pintadas de
branco, pisos pouco gastos, ar condicionado, e cheiro de álcool etílico, como
em todo hospital.
Um
enfermeiro te conduzia até o interior da Ala. Depois de passar esse corredor
completamente vazio, você entrava em um corredor maior, mais bem iluminado,
mais aconchegante, etc. Esse corredor era limitado por uma série de quartos
onde ficavam os internos, no final do corredor havia um balcão, onde ficavam
cerca de 2 a 3 enfermeiros por dia. As vezes nenhum.
A Enfermaria
Durante
a pesquisa de campo, fiquei na Ala Particular, onde estava meu parente. Ganhei
a simpatia das internas e de uma das enfermeiras, coisa que só uma boa atriz
faz. As visitas aos internos eram diárias e poderiam durar 30 minutos apenas,
mas isso se estendia para 1 hora e as vezes 2 horas. Podendo ficar conversando
o quanto eu quisesse com um grupo de internas que passava grande parte de seu
tempo conversando no refeitório da Ala Particular, eu ouvi coisas bizarras e
interessantes.
A
Enfermaria era um lugar peculiar. Quase todos os enfermeiros da Ala tinham comportamentos
antiéticos. Uma paciente, uma jovem, de 19 anos, pele morena e olhos verdes,
que estava a 3 anos para tratamento de depressão, disse manter relações sexuais
diárias com um dos enfermeiros desde que chegou. Perguntei se mais alguém
sabia, e ela disse que todos sabiam. Havia um “pequeno narcotráfico” dentro da
Ala Particular. Os pacientes tomavam os remédios que queriam tomar. Havia os
horários certos para tomar os remédios, que poderiam mudar a qualquer tempo
para o grupo de garotas do refeitório.
Eram
pessoas inteligentes e amorosas, porém psicologicamente instáveis. Na ala
Particular haviam pessoas isoladas e também as quais a convivência era
impossível devido a cronicidade de suas doenças. Portanto, até pela simpatia
das garotas, era comum que regalias fossem fornecidas a elas.
Elas
eram uma mulher de 38 anos, loira, e que tinha crises de choro e tristeza
inexplicáveis durante o dia. Muito especial, amorosa, e simpática. Uma garota
de 19 anos, pele morena, cabelos negros, olhos verdes, que parecia ser a mais
estável de todas, pois aconselhava e acalmava todas as outras, era quieta,
introspectiva e tinha alguns cortes pelo corpo. Perguntei o que ela tinha, e
ela disse que nem ela nem o médico sabiam. Disse apenas que se cortava e que
não sentia dor. Mantinha um relacionamento com um dos enfermeiros. Uma senhora
de 42 anos, muito engraçada, falante, fumante compulsiva, uma verdadeira mãe
das outras, mas que as vezes mudava o humor bruscamente. Tinha transtorno
bipolar, segundo ela e as outras. Uma mulher de 30 anos, muito tímida, mas
muito amável, sempre com um sorriso tímido no rosto, que veio do interior para
se tratar no Hospício, já que sua pequena cidade não tinha um. Passava muito
tempo no quarto, quietinha, vendo TV. Eu nunca soube qual era o problema dela.
Hoje penso que talvez seja excesso de silêncio mesmo. Todos temos um fogo
dentro de nós e precisamos deixá-lo sair, senão nos queimamos por dentro.
Sobre
o “pequeno narcotráfico”, como funcionava? Segundo o grupo de garotas do
refeitório, cada remédio causava uma determinada reação. Embora fosse comum
discussões como “O Donaren faz isso comigo, mas com ela não faz”. Cada paciente
tinha seus horários certos de tomar a medicação e não reclamavam, mas as
meninas do refeitório sempre conseguiam negociar, a exemplo do horário de
dormir, que era 19:30, e que quase sempre se estendia até à 01:00 da manhã.
Elas
também podiam pedir comida de fora do hospital, como hambúrgueres e pizza, e
uma delas me disse, que uma paciente muito rica saía diariamente para fazer
compras, mas que aí não era por “empatia” que ela conseguia essa regalia, era
por suborno ao Hospital mesmo.
Na
hora de tomar o remédio, cada paciente tinha que engolir e posteriormente
mostrar a língua, mas segundo as meninas do refeitório, o remédio ficava
embaixo da língua. Com isso, caso alguma paciente achasse que sua medicação não
estava funcionando, ela se auto medicava, trocando seu remédio com outra
paciente.
Era
comum diálogos no Refeitório como “Me empresta um remédio X, pois estou com
dificuldades para dormir, depois te dou um Y” ou “Me empresta remédio W pois
estou muito triste”.
Você
pode se perguntar: Porque não procurar o psiquiatra ao invés de se automedicar?
Essa é a pior parte. Os psiquiatras quase não apareciam naquele lugar. O que me
faz pensar que os psiquiatras se aproveitavam da frágil condição de interno do
paciente e quase nunca iam visitá-los. Só quando acontecia algo muito sério,
como suicídio, convulsão, em que o paciente era obrigado a sair da clínica.
A
primeira coisa que eles diziam para as pessoas quando elas chegavam no Hospício
era: “Enquanto você estiver aqui dentro, o mundo lá fora não pode te machucar”.
Era uma frase que todo mundo sabia de cor, enfermeiros, médicos (quando
apareciam) e até os próprios pacientes.
Como
observadora externa, percebi que aquilo era algo extremamente cruel. Eles
queriam que as pessoas se escondessem atrás de suas doenças e não voltassem
jamais a enfrentar o mundo.
Só
por curiosidade perguntei a um enfermeiro quanto custava para a família era
manter um paciente ali dentro. Ele disse R$ 300,00 o dia. Sendo que a maioria
ficava lá por anos a fio.
Não
dar assistência psiquiátrica aquelas pessoas, e dar apenas quando estavam em
estado tão deplorável a ponto de terem de ser tiradas do Hospício por estarem
fisicamente devastadas devido suas moléstias mentais, era extremamente
lucrativo para o dono daquele lugar.
Naquele
Hospício, era proibido o uso de celular ou qualquer aparelho que dê acesso ao
mundo externo. Uma mulher recém chegada, claramente depressiva, teve seu
celular confiscado, como de praxe. Dias depois ela estava de joelhos na
Enfermaria dizendo que precisava de conversar com seu filho. O enfermeiros
diziam que ela precisava esperar o médico. Ela gritou “Eles nunca vem aqui”. O
enfermeiro disse: “Se você continuar gritando nós vamos ser obrigados a te sedar”.
Depois
uma enfermeira conversou com ela, disse que o médico viria no dia seguinte,
pela manhã. Disse para ela esperar. Soube que o médico não veio no dia
seguinte. Eu e as garotas do refeitório presenciamos tudo.
Eu
imagino o estado de confusão mental dessas pessoas, medo de sair e não
melhorar, medo de ficar e viver todo aquele inferno. Mas de algo eu sabia: aquele lugar não
melhorava ninguém.
Eu
cheguei a conversar com essa moça, porque ela foi ao Refeitório. Ela disse:
“Isso não é um Hospício. Não existe Hospício sem médico!”. Eu disse: “Eu
concordo com você.”. Todas as meninas olharam para mim, mas eu precisava falar
isso.
A
família dela veio visita-la minutos depois. A moça falou tudo o que tinha
acontecido na noite passada, e mais um pouco, na cara de todos os enfermeiros e
pacientes. Ela terminou dizendo: “Eu vou sair daqui hoje!”. Poucos minutos
depois, o psiquiatra dela apareceu. Perguntou o que estava ocorrendo. O
psiquiatra disse que ela não poderia sair pois ela significava “um perigo para
a sociedade”, e que não poderia dar alta para ela.
Essa
é a melhor parte. O marido da moça foi literalmente “para cima” do psiquiatra e
gritou: “Você vai assinar esse papel agora siiim!”. Sem fala, e talvez pensando
em problemas maiores, o psiquiatra redigiu e assinou algo, o que demorou cerca
de trinta minutos, enquanto os parentes estavam sem reação diante de tal cena,
e os enfermeiros tentavam tranquilizar o marido o mais longe o possível daquele
caos.
*ERRATA:
A pesquisa de campo durou 3 semanas, e não 3 dias, como foi digitado errado na
Crônica 1. E foi feita através de visitas diárias que variavam de 30 minutos a
4 horas diárias, com as horas crescendo gradativamente (30 minutos/ 40 minutos/
1:30 horas/ 2 horas/ 2:30 horas/ 2:40 horas, etc) conforme ia conseguindo a
empatia dos funcionários e internos do local .
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