Coluna da Magnólia: As Políticas Higienistas e o Direito a Moradia e Alimentação
A
Experiência no Centro POP
No terceiro período do
curso de Direito da Universidade Federal Fluminense, eu e um grupo de mais
quatro integrantes escolhemos um tema para nosso trabalho de Sociologia
Jurídica: “O Acesso à Justiça por Pessoas em Situação de Rua” (o termo morador
de rua não é usado por se tratar de termo degradante). Fizemos a pesquisa
bibliográfica e depois partimos para a pesquisa de campo.
Atualmente moro em
Macaé, sou do Espírito Santo e vim ao Rio para estudar. Em Macaé, o local onde
mais se concentram as pessoas em situação de rua é o Terminal Central, no
centro da cidade, que é ponto final dos ônibus que circulam na cidade.
As pessoas em situação
de rua ficam ao lado externo do Terminal, na grama, em frente ao Centro POP,
que é um centro de apoio as pessoas em situação de rua. No centro POP não havia
dormitórios, mas eram servidas refeições. Ademais, perto do Centro POP os
moradores se sentiam mais protegidos de possíveis violências, tanto da polícia
quanto de outras pessoas.
Chegamos ao local
externo ao Terminal para tentar um primeiro contato com as pessoas em situação
de rua. Meus amigos mantiveram distância. Eu os cumprimentei abraçando-lhes e
apertando-lhes as mãos. Sentei em meio a eles e encorajei os meus amigos a
fazerem o mesmo. Só um foi capaz de cumprimentar e sentar-se junto às pessoas
em situação de rua.
Nunca estive com
pessoas tão agradáveis, sensíveis e gentis. Verdadeiras, bem humoradas e que
tinham muito a dizer sobre a vida. Me senti bem com elas porque lembrei da minha mãe. Eu e minha mãe passamos
por momentos tão difíceis que não tínhamos a opção de fingir, de esquecer de
quem somos de verdade. Era uma forma de não nos machucarmos ainda mais, entendem?
Se iludir e depois dar de cara com uma farsa? Nós duas não temos mais escadas
para cair. Acho que hoje, dois anos e meio depois, compreendo mais do que nunca
aquelas pessoas.
Depois de conversarmos
e tomarmos depoimentos das pessoas que viviam próximas ao Terminal, entramos no
Centro POP. Conversamos com a assistente social, que nos informou as principais
causas das pessoas estarem em situação de rua em Macaé (falta de qualificação
para emprego, drogas, etc). Entramos mais no Centro POP e encontramos uma bela
mulher lavando os cabelos encaracolados. Eu e mais um integrante fomos
entrevistá-la.
Ela disse que veio do
Nordeste meio por impulso, fruto de sua personalidade explosiva (e claro que
ela disse isso com suas palavras, mas desejamos manter o anonimato) deixando no
Nordeste seu filho com o intuito de voltar com melhores condições. Procurou
oportunidades em Macaé, e sem sucesso, foi parar nas ruas. Até hoje tenho
contato com ela. É uma pessoa extremamente gentil e educada. Quando ela disse
que tinha um filho eu disse que meu sonho era ter um também. Ela sorriu para
mim, de um jeito sincero, de forma que eu senti sua confiança e empatia.
Perguntamos qual eram
os principais percalços de ser mulher e estar em situação de rua. Ela disse que
era o assédio. Perguntamos se o assédio vinha de outros moradores de rua e ela
respondeu que o assédio era dos homens em geral, independente da situação de rua.
Depois entrevistamos um
guarda que cuidava do local, e o posicionamento dele foi que “os moradores de
rua eram vagabundos , drogados e ‘não prestavam’”. O resto da entrevista foi
repetição da frase anterior, só que com cada vez mais agressividade.
Para nossa sorte uma
viatura da PM parou por perto, com sirene ligada, a fim de perseguir algum
meliante. Conversamos com um PM que se disse bacharel em Direito. O
posicionamento dele foi igual ao do guarda, só que com um vocabulário mais
rebuscado e aquele cinismo educado que os acadêmicos usam para esconder
opiniões radicais. Pois bem, ele disse em suma que as pessoas em situação de
rua eram um “malefício para a sociedade” (bem de acordo com a Política
Higienista, da qual falaremos adiante), que só serviam para “roubar e arrumar
confusão” e por ele “estariam todos presos”.
Entretanto, o que mais
me marcou nessa pesquisa de campo no Terminal e nos seus arredores foi quando
eu sentei em um banco de concreto perto da porta de saída do centro POP, e um
homem em situação de rua, um senhor negro de barba branca e com roupas em
péssimo estado olhou para mim.
Eu podia ter fingido
que não o havia visto. É o que quase todo mundo faz: finge que pessoas em
situação de rua não existem. Não conversam com elas. Não lhes dão atenção. Usam o argumento de que são “bandidos,
viciados, ladrões”. Ou a verdade seja que a realidade de que pessoas durmam na
rua seja tão indigesta que é preferível à sociedade acreditar que tal realidade
não existe. Assim também é com os deficientes. “Não sei como lidar”, dizem as
pessoas. De fato, a maioria das pessoas
não está preparada para a vida em suas diversas facetas.
Eu não desviei o meu
olhar daquele senhor; olhei-o fixamente porque
sabia que assim fizesse, ele teria atenção que todos os negam e um vulcão de
coisas guardadas e não ditas explodiria. Ele olhou nos meus olhos e começou a
falar: “Nós somos lixo para a sociedade”. Ele repetiu a frase várias vezes,
cada vez mais alto e com mais eloquência , a ponto de a assistente social sair
de sua sala e perguntar o que estava acontecendo. Quando ela e o guarda
expulsaram o senhor do Centro POP e o silêncio voltou. Eu fiquei alguns minutos
imóvel naquele banco, tentando entender minha própria comoção.
Belle
Epóque e Segregação
Com a vinda da família
real para o Brasil, fugindo das invasões napoleônicas, o Rio de Janeiro
tornou-se o centro político e comercial do Brasil. Entretanto, a cidade
encontrava-se em péssimas condições; ruas desorganizadas e estreitas, esgoto,
sujeira, péssima arquitetura. Para resolver tal problema D. João VI incumbiu o então prefeito do Rio Pereira
Passos, mais o médico sanitarista Oswaldo Cruz para transformar a nova capital
segundo os preceitos iluministas; a idéia era se criar uma Paris nos trópicos.
Começou a reforma: prédios postos abaixo, ruas sendo abertas, praças e espaços
públicos sendo criados, aterros, tratamento de esgoto.
Mas há nessa história
algo bastante obscuro. A população mais pobre que habitava os chamados
“cortiços”, que eram um conjunto de residências com instalações bem precárias
que serviam de moradia para essa população. Essas instalações foram postas
abaixo e a população de baixa renda teve que reconstruir suas moradias nas
áreas periféricas, dando início às favelas cariocas.
O discurso sanitarista,
que usava a higiene como argumento principal para melhorar a qualidade de vida
e evitar mortes - que teve como um grande representante o médico Oswaldo Cruz -
serviu de justificativa para muitas ações que pretendiam transformar o Rio de
Janeiro em uma Paris nos trópicos. A vacinação em massa foi uma delas , que
surtiu ótimos resultados. Os aterros que eliminaram alagamentos que eram foco
de vetores de doenças. E temos também os cortiços, que foram demolidos em nome
dessa política sanitarista liderada por Oswaldo Cruz.
Obrigados a
reconstruírem suas vidas na zona periférica da cidade, nós tivemos um
apartheith social entre ricos e pobres. Os pobres, que receberam o infeliz
apelido de “classe perigosa”, por vezes ainda habitavam as ruas da cidade do
Rio. Pois então a eles foram criados espaços de segregação na própria cidade:
prisões e manicômios.
Encarada
nos padrões do sanitarismo positivista como “classe perigosa”, a construção da
cidade das luzes nos trópicos importou o afastamento das camadas menos favorecidas
para as regiões periféricas. Alijada da área central, para a família pobre,
restou o subúrbio e a favela. Vislumbram-se, por evidente, os descompassos
entre o tratamento dado à família elitista e aquele dispensado aos demais
estratos sociais inferiores. Em relação aos últimos, a intervenção travará uma
luta contra a infração a saúde, com implicações na esfera criminal, em que
escravos, mendigos, loucos, vagabundos e demais “desajustados” – entre eles as
crianças e os adolescentes infratores e ejetados - serão merecedoras de outras políticas
médicas, restritos aos espaços de segregação higienizados, como prisões e
manicômios (PATRÃO, 2016).
E muitos de nós
herdamos esse pensamento segregador, mal sabendo suas origens históricas.
Agora, como tirar séculos de pensamentos preconceituosos com classe e cor de
uma sociedade em um instalar de dedos? Deixo a reflexão.
Muito tem sido feito
para corrigir tal passado grotesco e suas marcas no inconsciente coletivo: lei
contra o racismo, política de cotas para estudantes de baixa renda e negros,
casas populares para pessoas em situação de rua. Mas... Estamos tão longe!
Longe do que chamam de democracia. Sem tirar os passos que damos para trás,
como aconteceu no governo Dória.
A
Tentativa de Segregação Dia Após Dia
Em 2017, em uma das
manhãs mais frias do ano, policiais acordaram moradores de rua com jatos de
água fria, molhando cobertores e
fazendo-os perder boa parte de seus pertences. A notícia virou polêmica e não é
por menos.
Dória queria tirar as
pessoas em situação de rua das ruas mais
movimentadas de São Paulo a qualquer custo (isso é claro, nos remete a política
sanitarista de Oswaldo Cruz e a posterior favelização, a qual comentamos
anteriormente). Dória chegou a demitir publicamente uma funcionária (Cidinha)
por não ter conseguido a empreitada de “remover” os moradores em um dia. Os
abrigos eram insuficientes para os moradores; não cabia menos da metade deles.
Na década de 90, um
documentário intitulado “Os Pobres Vão a Praia” (disponível no YouTube) traz
mais uma vez a prova de que a política higienista trouxe reflexos até os dias
atuais. O documentário é sobre a praia da zona sul do Rio de Janeiro, que
durante a semana é freqüentada quase unicamente pelos moradores citadinos/não
periféricos da zona sul, mas que aos finais de semana é freqüentada pelos
moradores periféricos da cidade do Rio.
No comentário os
banhistas citadinos não economizavam no preconceito. Diziam que os moradores
periféricos eram uma “gente suja, que você olha para a cara dessas pessoas e
tem vontade de fugir”. Ainda uma banhista disse “Eu tenho horror de olhar para
essas pessoas e pensar que são do mesmo país que eu, que são brasileiros...Não
são brasileiros não, são sub-raça!”. Outra banhista disse: “Eu me sinto mal
porque elas não são educadas”. A outra banhista disse mais: “Gente mau educada,
que fica falando grosseria com a gente”.
Educação. Quando a moça
moradora da zona sul, que participa do documentário, fala em educação, ela não
se refere à empatia, ao bem tratar. Ela fala de um conjunto/código de regras
que nada tem a ver com a sincera empatia e desejo de bem tratar o próximo. Ela
fala apenas de um código de regras que é usado para separar duas classes: ricos
e pobres.
Esse pensamentos nos
remete aos hábitos europeus absorvidos na belle epoque. A população que foi
para a periferia expulsa da cidade, e que lá reconstruiu sua vida e até hoje
resiste bravamente ao descaso de todo o
nosso passado histórico e de nosso presente. A população que lá construiu novos
hábitos como em toda comunidade autônoma. Usava roupas de algodão e trapos e
não vestidos vindos de Paris, não aprendia idiomas modernos, nem instrumentos
clássicos. O que não fez com que sua cultura fosse inferior. Na verdade, esse povo
periférico desenvolveu e conservou boa parte da real identidade do país, que
ficou perdida na europeização durante a belle epoque. Desenvolvendo samba, a
capoeira e tantos outros hábitos. Esses hábitos, tamanho seja o preconceito que
resiste até hoje, não tornaram esses povos menos “educados” de maneira alguma!
E é uma pena que os
governantes corruptos fechem os olhos e literalmente criem muros de vergonha
quando recebem autoridades públicas, como o Papa João Paulo II (muros foram
montados para esconder as favelas durante tal visita). Sim, vocês (político
corruptos) tem que ter vergonha. Mas não apenas nas visitas solenes. Tinham que
ter vergonha durante todo o mandato para aplicar, principalmente, o dinheiro suado
dessas pessoas verdadeiras, trabalhadoras e honestas que o governo só enxerga
quando infringem o Código Penal. Porque direito a moradia, a alimentação, a
educação de qualidade, isso não existe para a periferianão é mesmo?
Se fechassem as portas
do Congresso e deixassem nossos parlamentares dois meses sem comida e com frio,
como as pessoas em situação de rua, ou as que vivem em zonas periféricas, já
teriam cometido pelo menos dez crimes cada um. Desculpe, onze, contando com a
corrupção.
Parece um ciclo
vicioso: pessoas discriminando pessoas, que por sua vez são discriminadas pelo
governo e por isso tem seus direitos mais básicos anulados. Cidadania de papel.
O que nos resta fazer? Nada. Se o governo consome os recursos de forma ilícita
ou equivocada, não nos resta nada. Restaria porém, dar-nos as mãos em meio ao
caos político econômico e social vividos. Não importa se as mãos são
diferentes, limpas, sujas, calejadas, lisas, brancas, negras... A pele é casca
para o espírito. Se nosso passado histórico errou ao nos enfiar goela abaixo
que somos diferentes, vamos acertar entendendo que somos iguais. Fraternidade.
Ás vezes sinto que se todos olhassem o espírito ao invés de uma mão mal lavada,
de um português “errado”, de uma roupa suja ou coisas do tipo teríamos mais
chances de nos comunicar,
consequentemente de nos ajudar, construindo daí algo novo, que trouxe-se
alguma mudança significativa, se não na sociedade, pelo menos em nós.
REFERÊNCIAS:
PATRÃO, Benedicto. De Debret a Marc Ferrez: Higiene na Família
Carioca Oitocentista. Editora: Folha Seca. Rio de Janeiro. 2016.
Documentário “Os Pobres Vão a Praia”. TV Manchete.
1990. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kOzGFJZZVe8.
Acesso em: 15/02/2018.
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